Acordo entre partidos para aprovar mudança no Código Florestal e livrar o ministro Palocci de depor no Congresso, ameaça patrimônio natural, cria risco de desmatamento e desastres e destrói mecanismo fundamental da democracia. Todos perdem, inclusive Palocci. Só os maus produtores que nada têm a perder ganham.
O acordo, do qual tive notícia por fontes de muita credibilidade do ambiente político-parlamentar brasileiro, foi hoje noticiado em detalhes apenas em matéria de Mauro Zanatta e Caio Junqueira para o Valor. Ele trocaria a aprovação das mudanças no Código Florestal pela blindagem do ministro-chefe do Gabinete Civil, que não seria convocado ao Congresso para prestar contas do aumento rápido de seu patrimônio, suspeitas de tráfico de influência e conflito de interesses. Seria aprovado o relatório negociado e uma emenda apresentada pela liderança do PMDB afrouxando as regras para as APPs (áreas de preservação permanente), liberando a recomposição da reserva legal e anistiando todos os que praticaram atos ilegais, com pleno conhecimento da lei, até 2008, entre outras liberalidades daninhas.
Essa troca de questões de princípios democráticos e ética política por legislação de interesses de alguns grupos influentes é um desses arranjos que está se tornando comum na política brasileira e deixando disfuncional a democracia brasileira. Como na terra degradada, essas áreas inoperantes inutilizam mecanismos essenciais para impedir a erosão integral da democracia representativa no Brasil. Qualquer democracia, seja presidencialista, seja parlamentarista, precisa ter como princípios pétreos, intocáveis, aqueles elementos que permitem o funcionamento de pesos e contrapesos. Um dos mais importantes é a obrigatória convocação de autoridades do Poder Executivo para prestarem contas de suas políticas e sua conduta ao Congresso ou Parlamento. É prática comum no presidencialista EUA e no parlamentarista Reino Unido, só para nomear os dois exemplos mais conhecidos e noticiados.
No Brasil, o Executivo há muito decidiu que ministros não prestam contas e raramente comparecem para discutir suas políticas com os congressistas. Uma nefasta cultura da “blindagem” passou a manter fora dos mecanismos da transparência democrática funcionários graduados e ministros. Comissões parlamentares de inquérito, então, nem pensar.
O que os parlamentares governistas dizem da convocação do ministro Palocci é típico: “ato de guerra”, “se é assim, vamos retaliar e convocar todos os ministros de outros governos”. Deveriam ter convocado mesmo, quando eram oposição e eles governo. Aliás, justiça seja feita, no governo de Fernando Henrique houve muito mais CPI e convocação, com duros questionamentos do PT, então na oposição, do que no período do PT no governo. Uma combinação entre oposição vacilante e a “cultura da blindagem”, eliminou as convocações e a fiscalização parlamentar.
Mas a oposição anda mais que vacilante, é conivente. Todas as informações que tenho são de que o PSDB teria participado desse acordo espúrio pela realização do desejo dos ruralistas, ferindo fundo a democracia e a ética política. Aliás, esta é a tragédia política de nossos dias. No passado, tínhamos alguns grandes partidos clientelistas dispostos a qualquer barganha e duas referências concorrentes de comportamento ético na política brasileira: PT e PSDB. Algumas siglas menores, também se mostravam íntegras. Hoje, setores numerosos do PT e do PSDB igualaram seu comportamento ao que meu saudoso amigo Márcio Moreira Alves dizia ser a “moral homogênea” da política brasileira, da qual aqueles partidos clientelistas seriam o padrão. Diminuiu muito o número de siglas pequenas íntegras.
Esse acordo fere fundo a democracia. Degrada a política brasileira. Faz mal à reputação da presidente Dilma Rousseff e, principalmente, de seu Chefe do Gabinete Civil, Antonio Palocci. Se Palocci, como diz, tem uma empresa regular, que presta serviços regulares, baseados em qualificações por ele adquiridas, a clientes regulares, deveria ir ao Congresso e por um ponto final nas suspeitas que mancham, mais uma vez, sua reputação e esvaziam sua credibilidade. É questão de dez minutos: explicação dos serviços, nomeação dos clientes e o que lhes foi servido, apresentação das correspondentes notas fiscais. Por não admitir a transparência, Palocci terá sua reputação novamente marcada pela sombra de uma manobra espúria e situações mal explicadas. Falta de transparência não protege. Apenas encapa as personalidades com o manto irremovível da dúvida. A suspeita se torna irremissível, embora os acertos dêem a essas pessoas a discutível possibilidade de não se explicarem à sociedade. Por vezes terminam tendo que se explicar à Justiça porque essas atitudes perenizam as suspeitas e atiçam as mentes investigadoras, comprometidas com a busca da verdade e da justiça.
O acordo é ruim para o agronegócio brasileiro. Ele aumenta o risco para as culturas pelo efeito de médio prazo do desmatamento e pelo impacto dessas práticas danosas nos cursos de água e mananciais. Enodoa a reputação de nossas commodities nos mercados de primeira linha, que exigem uma cadeia de suprimento limpa de danos à natureza, emissões de gases estufa, agressões aos direitos dos trabalhadores. Iguala bons e maus produtores; quem tem terra legal e grileiro; produtor de qualidade, agregador de valor e gerador de riqueza e predadores de fronteira, que abrem áreas a correntão, superexploram a terra e os trabalhadores e depois se vão, deixando um legado de pó e pobreza.
O acordo cria risco ambiental sério, de desastres, como deslizamentos; de desertificação e savanização; de aumento das emissões de gases; de erosão do solo e dos rios; de destruição de fontes de água.
Um acordo dessa natureza só atende aos interesses desses que devem e temem. Desmatadores que agiram de forma consciente, sabendo que feriam a lei e apostavam na impunidade e na anistia. Como estão fazendo agora em Mato Grosso. Lá o desmatamento detectado pelo Imazon e pelo INPE, com suas distintas metodologias, em período de chuva ainda, com correntão, mostra o reavivamento da expectativa de anistia e impunidade. Até a senadora Kátia Abreu admitiu esse efeito das expectativas, embora subestimando sua ordem de grandeza, dizendo “à Folha que ‘meia dúzia’ de produtores pode ter desmatado esperando serem anistiados pelo futuro novo Código Florestal. ‘Mas isso é isolado. O Brasil desmata cada vez menos. Não vamos permitir que isso atrase ainda mais a votação’(…).”
A contradição entre o acordo que se confabula no Congresso e o que disseram os ministros Izabella Teixeira e Aloízio Mercadante é assombrosa. Ao anunciar os dados do INPE sobre o aumento do desmatamento, principalmente no Mato Grosso, prometeram aumentar o monitoramento e a fiscalização e punir os infratores. A ministra disse que bois em áreas desmatadas serão apreendidos e doados. O ministro Mercadante alertou que não dá para esconder o que fazem do monitoramento dos satélites e da fiscalização. Criaram um “gabinete de emergência”, que garantirá a reversão desse quadro de retomada do desmate ilegal.
Os desmatadores, informados da anistia vindoura para os seus desmandos até 2008 apostarão nos ministros ou no poder anistiador dos ruralistas, acostumados a tirar na pressão perdão de dívidas e vista grossa para o desrespeito à legislação ambiental e trabalhista?
Se os ministros não sabem ainda o que leva ao aumento do desmatamento, não precisam gastar com logística para enviar investigadores ao campo. As causas dessa vez não estão na Amazônia, nem na dinâmica das commodities exportadas, ou na demanda doméstica por carne. Estão vizinha de seus gabinetes, no Congresso Nacional e em alguns dos vários corredores do poder ali na Praça dos Três Poderes.
Não abandonaremos a esperança de que este acordo caia, que as lideranças íntegras que restam no PSDB e no PT exorcizem essa tentação de atender a uma fração da sociedade, com demandas ilegítimas, fazendo uso de manobras também ilegítimas, passando o correntão político na democracia, na ética e nas florestas.
* Para ouvir o comentário do autor na rádio CBN clique aqui.
** Publicado originalmente no site Ecopolítica.