Buenos Aires, Argentina, 26/1/2015 – A ampla repercussão midiática do assassinato de uma estudante argentina no vizinho Uruguai trouxe à tona um tipo de violência quase não registrada como causa de morte de adolescentes no país: o femicídio. Na maioria dos países latino-americanos a falta de sistematização de dados oficiais sobre femicídios, ou feminicídios (vocábulos que tipificam os assassinatos de mulheres por razões de gênero), dificulta a identificação das vítimas por idade.
No caso da Argentina, alguns informes independentes, como o da não governamental La Casa del Encuentro, começam a tornar visível um dado geracional: não só se mata mais mulheres por razões de gênero, como também aumentam as vítimas com menos de 18 anos. “Entre 2008 e 2014, fomos vendo como paulatinamente aumentou, e isso tem a ver com violência de gênero dentro do noivado ou abuso sexual seguido de morte”, afirmou à IPS a diretora-executiva dessa organização, Fabiana Túñez.
O informe do Observatório de Femicídios Adriana Marisel Zambrano, pertencente a essa organização, registrou 295 casos de femicídio durante 2013 na Argentina, com 40 milhões de habitantes. Entre 2008 e 2013, ocorreram 1.236 homicídios por razões de gênero, equivalentes a um femicídio a cada 35 horas. Segundo o Observatório, durante esses seis anos houve 124 adolescentes assassinadas, entre 13 e 18 anos, vítimas de femicídios, segundo dados coletados dos meios de comunicação, equivalentes a 21 por ano, em média.
Mas o número real pode ser amplamente superior, porque em diversas ocasiões não se indica a idade da vítima. O informe coincide com um caso que provocou comoção na Argentina: o assassinato da estudante Lola Chomnalez, de 15 anos, que havia desaparecido em 28 de dezembro, quando estava de férias na casa de sua madrinha em um balneário no Uruguai.
“Encontraram morta a menina argentina perdida no Uruguai. Continuam nos matando e ainda há quem pergunte o que fazia uma de nós caminhando sozinha pela praia. Ouve-se na televisão: o assassino viu uma garota linda e jovem e se aproveitou da situação”, indignou-se no Facebook a ativista feminista Verónica Lemi, que usa o pseudônimo Penélope Popplewell. “Se até para passear na praia é preciso ir protegida, carregar spray de pimenta ou estar acompanhada, as mulheres não são livres. Se agimos com os mesmos direitos que os homens, aumentamos o risco de nos matarem só por sermos mulheres”, acrescentou.
Às vezes, os verdugos atacam na rua, na saída de uma discoteca, na volta da escola. Mas em outros casos são parte do entorno de suas vítimas. Segundo Túñez, metade dos femicídios está vinculada a abuso sexual seguido de morte, e a outra metade com violência entre noivos e casais, o que erradamente alguns meios de comunicação chamam de crime passional.
Os dados confirmam uma tendência mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde, três em cada dez adolescentes sofrem violência durante o noivado. As causas, apontou Túñez, são as mesmas que para os adultos. “O homem agressor controla, domina, tem ciúmes. E as adolescentes, que estão em suas primeiras etapas de idealização do amor, consideram que poderão mudar isso, embora, na realidade, comecem a entrar em uma grande trama da qual depois não podem sair”, acrescentou.
Túñez destacou que é preciso conscientizar as adolescentes para “desnaturalizar” esses comportamentos. “Não é normal o noivo ter ciúmes, não é normal não poderem sair sozinhas, não é normal terem os movimentos controlados, não é normal terem seus celulares verificados, não é normal serem insultadas e apanharem”, ressaltou à imprensa local Ada Rico, outra fundadora da La Casa del Encuentro.
Em sua página no Facebook Ação Respeito: Por Uma Rua Sem Assédio, Lemi, de 26 anos, tenta desnaturalizar essa “cultura agressiva e sexista”, cuja pior expressão é o femicídio. “Por um lado temos o avanço que se deu nos direitos das mulheres, por outro, quanto à idiossincrasia, continuamos vivendo em uma sociedade muito machista na Argentina, onde dizer algo humilhante a uma jovem de 15 anos não é problema porque significa que ela gosta”, disse a ativista à IPS.
Para Lemi, “a aparente liberdade acaba aí. Porque, cada vez que uma jovem é abusada, toda a imprensa e os comentaristas dizem ‘certamente era uma puta’. Quando uma mulher exerce sua liberdade sexual é considerada uma puta”, acrescentou. Para a ativista, é preciso combater socialmente “essa relação homem e mulher, na qual há um dominador e uma submissa, e enfrentar essa cultura de culpar a vítima”.
“Há muita violência contra as mulheres, não só física, mas também no discurso, em nível simbólico. Continua sendo justificada a violência contra as mulheres. Dentro desse contexto, é lógico que os femicídios ocorram”, afirmou Lemi.
Natalia Gherardi, diretora-executiva da Equipe Latino-Americana de Justiça e Gênero (ELA), considera que o aparente aumento de casos de femicídios pode estar vinculado à sua maior divulgação na imprensa. “Há maior visibilidade e por isso conhecemos mais casos ou mortes, quando já é muito tarde para denunciar”, pontuou à IPS.
A Argentina integra o grupo de países latino-americanos nos quais houve progressos na educação a favor da igualdade de gênero e no acesso da mulher a educação e cargos de direção. Além disso, o Congresso argentino aprovou em 2012 uma lei que endurece as penas para os casos de violência de gênero, embora não inclua a figura do femicídio, como já fizeram outros países da região. Nela se estabelece a prisão perpétua quando o responsável é o companheiro ou ex-companheiro da vítima, ou quando se mata por razão de gênero.
Para Gherardi, “avançou-se muito na inserção trabalhista, na educação, mas isso por si só não basta para mudar a cultura machista e patriarcal”. A diretora da ELA questiona as deficiências de implantação, controle e avaliação de políticas públicas, como a de Educação Sexual Integral, que contempla aspectos de gênero. “Gostaria de ver líderes políticos, mulheres e homens, falando concretamente de temas de violência, além das ações grandiloquentes, quando ocorrem fatos que causam espanto”, ressaltou.
Gherardi destacou o papel fundamental dos meios de comunicação na luta contra a violência machista. E afirmou que há veículos e jornalistas com mensagens “que se antepõem ao estereótipo de gênero e outros que colaboram para que se perpetue, colocando as mulheres em papéis humilhantes”, acrescentando que “antes de chegar ao golpe, ou ao femicídio, há uma enorme quantidade de situações sutis de violência cotidiana”.
Outros países latino-americanos
No México, a Rede pelos Direitos da Infância (Redim) relatou em dezembro que, em 2013, as meninas e adolescentes mortas supostamente por homicídio foram 315, em um exemplo da situação que se vive em outros países latino-americanos. “Os casos de violência contra as mulheres no México estão aumentando, na maioria são meninas e adolescentes vítimas de uma violência que em muitas ocasiões acabam em femicídios”, segundo a Redim, que critica a falta de ações do governo para prevenir essa situação.
Em El Salvador, a Polícia Nacional Civil registrou 261 femicídios nos primeiros 11 meses de 2014, 28 deles de mulheres entre zero e 17 anos. Já no Panamá, três em cada dez mulheres vítimas de femicídios eram menores de idade, segundo o Ministério Público do país. No período 2009-2014, houve nesse país 343 mortes violentas de mulheres, das quais 226 classificadas como femicídios. Envolverde/IPS