Esta versão corrige as referências feitas à Tanzânia na reportagem publicada anteriormente, porque a IPS não pôde confirmar essa informação de maneira independente.
Rio de Janeiro, Brasil, 24/9/2013 – A congolesa Ornela Mbenga Sebo escapou em 2011 de um acampamento rebelde em um lugar não identificado da África, onde era escravizada, e se escondeu em um navio mercante. Ali permaneceu no compartimento do lixo, sem saber para onde ia. O barco chegou ao destino duas semanas mais tarde, e então soube que estava no porto de Santos.
Sua peripécia parece romance de aventuras. Como ela, várias centenas de cidadãos da República Democrática do Congo (RDC) buscam refúgio no Brasil. Ornela nasceu em Walikale, na província de Kivu do Norte. A localidade possui ouro, cassiterita e coulumbite-tantalita, cuja exploração é alvo de disputas entre diferentes grupos armados e o exército nacional.
Até 2011, sua vida parecia a salvo de toda essa violência. Sua família tinha uma vida cômoda. O pai dava aula na universidade e ela estudava jornalismo e trabalhava em um banco. Aprendeu inglês e francês e viajou ao exterior. Em Walikale começou sua odisseia. Em janeiro de 2011, quando tinha 21 anos, a cidade foi alvo de um violento ataque de insurgentes, que mataram, invadiram e incendiaram casas e prédios públicos.
A jovem estava em seu trabalho quando começou o ataque e ali se abrigou até que as coisas se acalmaram. Então, correu para casa, que estava incendiada, e não encontrou sua família. Sozinha, perambulou por semanas com outras pessoas que também fugiam. Pretendia chegar à capital, Kinshasa, onde vivem seus avós. “Fui a pé. Caminhamos duas semanas. Encontrava gente que também estava fugindo: doentes, crianças, mulheres e homens”, contou à IPS.
A RDC, extenso e rico território da África central, há décadas é palco de conflitos entre governo e diferentes grupos armados, alguns deles vinculados aos vizinhos Burundi e Ruanda. Em Walikale, a Organização das Nações Unidas (ONU) vem documentando, desde 2010, a prática de diversos crimes, incluindo violações sexuais maciças, por parte de milícias e do próprio exército.
O relato de Ornela mostra o terror que sentia ao percorrer cidades fantasmas, abandonadas e destruídas, cujos únicos habitantes eram cadáveres jogados nas ruas. “Tenho isso vivo na memória, e quando conto parece que volto a esse lugar”, afirmou, destacando que o maior perigo era cruzar com grupos armados, “que iam de cidade em cidade buscando gente para matar”.
Para se proteger, mais de uma vez se fingiu de morta. Mas acabou capturada e levada para um acampamento, onde foi escravizada junto com outras dezenas de pessoas. Os homens armados que a sequestraram eram ruandenses, assegurou. O grupo foi colocado em três helicópteros. O trajeto durou cerca de duas horas. O acampamento para onde foram levados não ficava perto de cidades ou zonas povoadas, pelo que viu enquanto estavam no ar.
Charly Nzalambila, um congolense que trabalha como voluntário da Cáritas Brasil e ajudou a contar a história de Ornela Mbenga para as autoridades brasileiras, acredita que esses homens eram membros das Forças Democráticas pela Liberação de Ruanda. Mbenga passava o dia carregando baldes de água para abastecer o acampamento. Os rebeldes obrigavam as mulheres a “dormir com eles, lavar suas roupas e fazer comida. Eu dormia no chão. Apanhei. Sofri moral, física e mentalmente”, disse.
Um dia conheceu um jovem que se solidarizou com ela e a ajudou a fugir, mostrando que o acampamento ficava perto de um porto. Ele disse que estavam na Tanzânia, mas a IPS não pôde confirmar essa informação. Em certa madrugada de fevereiro, a jovem pulou o muro que rodeava o acampamento e chegou a um navio mercante. “Era questão de vida ou morte”, destacou. Para comer, só conseguiu um pouco de amendoim.
Duas semanas mais tarde, depois de descobrir que chegara ao porto de Santos, a segunda surpresa foi notar que entendia o idioma português, já que havia passado um ano em Angola com sua família. Em terras brasileiras logo entrou em contato com angolanos e congoleses que vivem aqui e, pouco depois de sua chegada, já vivia como asilada no Rio de Janeiro.
O Brasil não possui cotas para admitir refugiados. Segundo a lei de refúgio, adotada em 1997, inclusive um estrangeiro que entra com documentos falsos tem direito a solicitar essa proteção. Entretanto, viajar sem conhecer o rumo talvez não seja tão raro para os africanos que fogem desesperados da violência.
“Muitos jovens chegam ao Brasil por casualidade”, disse à IPS o angolano Fernando Ngury em 2007, ao completar dez anos da lei de refúgio. “Entram em um navio acreditando que irão para a Europa e acabam chegando ao Brasil. Às vezes, no caminho são jogados ao mar”, denunciava o titular do Centro de Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados.
O país, de 198 milhões de habitantes, tem hoje 4.715 refugiados, 1.688 angolanos, 700 colombianos e cerca de 500 da RDC, segundo os últimos dados oficiais. Do total, 2.012 são assistidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Além disso, há 1.441 solicitantes de refúgio à espera de uma resolução. O procedimento exige um trâmite que começa no Ministério da Justiça, junto ao Comitê Nacional para os Refugiados.
Ornela reconstruiu sua vida aos poucos. Hoje divide uma casa com outros quatro congolenses em um subúrbio carioca. Como refugiada, tem direito a trabalhar e gozar de todos os serviços públicos disponíveis, como saúde e educação. Agora tem 23 anos. Falar vários idiomas lhe permitiu conseguir um emprego como recepcionista no Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também fez muitas amizades.
Há pouco tempo as redes sociais lhe deram uma grande alegria: descobriu que seus pais e irmãos não estão mortos. Pelo Facebook soube que sua família conseguiu fugir de ônibus para o Senegal, levando as economias que tinham em casa. Hoje vivem em Chicago, onde a mãe trabalha de camareira em um hotel e seu pai está desempregado. Seu sonho é se encontrar com a família.
Seus amigos e companheiros de trabalho, sensibilizados, decidiram fazer arrecadação pela internet para custear sua passagem de avião para os Estados Unidos. Por outro lado, Ornela não pretende voltar à RDC. “Amo meu país, sou africana, mas só voltaria se mudasse a situação de insegurança. E, mesmo assim, apenas para visitar meus avós que continuam lá”, afirmou.
“Ela é um exemplo de força, convicção e esperança”, disse à IPS seu companheiro de emprego, George Patiño, que teve a ideia de apelar para o financiamento colaborativo (crowdfunding) no site brasileiro Vakinha para que Ornela viaje a Chicago. É necessário conseguir US$ 2.500 e Patiño espera consegui-los em três meses.
No perfil criado no dia 5, chamado Ornela Mundi, as doações somavam 25,9% da quantia necessária até a publicação deste artigo. “Ela tem uma história de superação, e no final conseguirá ser feliz”, afirmou Patiño. Essa história merece ser contada em um livro, entendeu uma jornalista brasileira que se prepara para escrever sua biografia. Envolverde/IPS