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Ahmadias do Paquistão não sabem de eleições livres e justas

Membros da comunidade ahmadia no Paquistão denunciam que o sistema eleitoral os segrega. Foto: Adil Sidiqqi/IPS

Carachi, Paquistão, 8/5/2010 – Syed Hasan, um trabalhador de 25 anos do hospital privado da cidade paquistanesa de Lahore, prevê passar na cama a maior parte da jornada eleitoral do próximo sábado. Como membro da comunidade islâmica ahmadia, Hasan boicotará as eleições em protesto porque esta minoria de aproximadamente quatro milhões de integrantes não tem o mesmo direito de votar que o restante da população do país.

Desde que a Constituição os qualificou de não muçulmanos, se persegue os ahmadias, seguidores do clérigo Mirza Ghulam Ahmad, que no século 19 se autoproclamou como o messias. A discriminação se sente principalmente nas urnas, onde são obrigados a registrar seu voto dentro de uma categoria distinta do restante da população e a aceitar seu status de não muçulmanos contra suas crenças religiosas, explicou Amjad M. Jan, presidente da Associação de Advogados Muçulmanos Ahmadia, com sede nos Estados Unidos, entrevistado pela IPS por e-mail.

Segundo Hasan, “para votar como muçulmano paquistanês, que é como nos consideramos, teríamos que renunciar à comunidade ahmadia e ao nosso líder espiritual Mirza Ghulam Ahmad, como falso profeta”. Mas ele não está disposto a fazer isso. Sua fé e mais importante do que dar o seu voto, disse à IPS.

A opção está clara para muitos da comunidade ahmadia. Contudo, representantes da sociedade civil e até dirigentes políticos com consciência se preocupam com o significado do boicote para a democracia, neste país de 170 milhões de habitantes, cuja população deseja “eleições livres e justas” no dia 11.

Para o chefe da Intermedia, Adnan Rehmat, “se 200 mil adultos ahmadias não puderem votar porque a lei os priva desse direito, isso significa que, tecnicamente, as eleições não são livres nem justas” e indica que algo está muito errado no coração do funcionamento estatal. A Intermedia é uma organização de desenvolvimento de mídia com sede em Islamabad.

“Os ahamdias sofrem uma discriminação sem precedentes até mesmo em nossa história cheia de altos e baixos”, disse à IPS o novelista e jornalista paquistanês Mohammad Hanif, acrescentando que obrigá-los a votar em uma categoria distinta da que lhes cabe é “muito pior do que privar as pessoas do direito de voto, se parece mais com tirar-lhes sua humanidade”.

Desde seu nascimento como nação, em 1947, até 1985, quando era governado pelo ditador Mohammad Zia-ul-Haq, o Paquistão teve um sistema com um eleitorado unificado no qual toda a população tinha direito de eleger os candidatos de sua preferência, independente de sua religião. Mas, em uma tentativa de “islamizar” o país, Zia-ul-Haq ordenou um sistema separado para os que chamou de não muçulmanos, que só podiam eleger 5% do parlamento.

O sistema, efetivamente, tirou a representação política dessa comunidade, impedindo que os ahmadias ocupassem cargos de governo importantes ou mesmo que conseguissem empregos em dependências estatais, como a polícia.

Em uma tentativa de aplacar os islamitas de linha dura, em 2002 o então presidente Pervez Musharraf emitiu a ordem executiva número 15, que obriga os ahmadias a se registrarem na “lista de eleitores suplementares”, média que, segundo Jan, “nos condiz com a justiça islâmica”. Desde então, acrescentou, os sucessivos governos fizeram vistas grossas para o “apartheid de eleitores” do Paquistão, o que viola o artigo 25 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assinado pelo Paquistão em 2008.

Para algumas pessoas esta discriminação é apenas um assunto político, mas para os ahmadias é questão de vida ou morte. Os vazios legais permitem que os extremistas religiosos ataquem as minorias, enquanto as controvertidas leis contra a blasfêmia preparam o caminho para uma intolerância maior.

O Jamiaat-i-Ahmadiyya (movimento ahmadia) divulgou em março o informe anual referente a 2012, no qual denuncia o assassinato de 19 membros da comunidade. Desde 1984 morreram 226 ahmadias pela violência sectária. No dia 28 de maio de 2010, extremistas massacraram 94 ahmadias em suas mesquitas em Lahore. Ninguém foi punido por esse crime.

O opositor Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI), liderado pelo ex-jogador de críquete Imran Jan, saiu em defesa da minoria. O porta-voz, Zohair Ashir, disse à IPS que seu partido considera todos os cidadãos paquistaneses iguais perante a lei. “É uma vergonha os governos anteriores não terem retificado muitas injustiças e desigualdades do sistema”, afirmou, acrescentando que se o PTI chegar ao poder “cuidará desses assuntos”.

Porém, Ashir não disse quais medidas concretas serão tomadas para garantir a participação política da comunidade ahmadia. “É hipotético nesta etapa decidir quais medidas legislativas serão tomadas e quando. Acertar a economia e a crise energética, além de lutar contra o terrorismo, são áreas de imediata e maior prioridade para nós”, ressaltou.

Poucos acreditam que as próximas eleições trarão mudanças. O jornalista ahmadia Aamir Mehmud, de 37 anos, disse por telefone à IPS, da cidade de Chenab Nagar, na província do Punjab, que “não me ocorre nenhum partido ou dirigente que tenha o valor de iniciar o debate e ignorar estas leis discriminatórias utilizadas contra as minorias”. Em Chenab Nagar, 95% dos 70 mil habitantes pertencem à comunidade ahmadia.

Na medida em que se aproxima a eleição, agrupações e pessoas com a intenção de proteger a “santidade do profeta Maomé” aprovam as leis eleitorais discriminatórias e mostram seu desprezo ao boicote.

“Se os ahmadias querem reverter a decisão que criou uma lista de eleitores em separado devem seguir o caminho da justiça e do parlamento”, disse Qasim Faruqi, porta-voz da organização proscrita Ahle Sunnat Wal Jamaat, em entrevista à IPS. “O boicote não é uma resposta. É importante votar, os ahmadias devem desempenhar seu papel. Não participar das eleições apenas enfraquece o país”, acrescentou.

A crescente tensão não faz prever nada bom para esta comunidade, que cedo ou tarde sofrerá o peso da ira dos islâmicos. Sete ahmadias foram hostilizados por várias faltas como “profanar o sagrado Corão” e “se dizerem muçulmanos”. Também foram acusados de imprimir e distribuir textos “blasfemos” disfarçados de jornal da comunidade, Al-Fazal. As autoridades ahmadias disseram que o jornal, um dos mais antigos do Paquistão, só é distribuído dentro da comunidade. Envolverde/IPS