Porto Príncipe, Haiti, 15/10/2013 (Haiti Grassroots Watch) – Há meio século o Haiti recebe ajuda alimentar, e só dos Estados Unidos chegaram mais de 1,5 milhão de toneladas de alimentos nas duas últimas décadas. Porém, agências internacionais acabam de lançar um alerta: cerca de dois terços dos haitianos, quase sete milhões de pessoas, passam fome. E aproximadamente 1,5 milhão – o dobro do ano passado – enfrentam “severa” ou “aguda” insegurança alimentar. Por quê?
Uma nova série de cinco investigações se dedica a lançar luz sobre esse problema, suas causas estruturais, as ineficiências e o que um funcionário definiu como “os efeitos perversos” da assistência alimentar. O setor agrícola haitiano está paralisado há tempos, ignorado por sucessivos governos e doadores internacionais. A agricultura representa cerca de 25% do produto interno bruto, e até há pouco tempo empregava, direta ou indiretamente, mais de dois terços da população. No entanto, por várias décadas houve pouco investimento.
O Ministério da Agricultura recebe menos de 5% do orçamento nacional, e, não faz muito tempo, o financiamento externo da ajuda alimentar superava, às vezes mais que o dobro, o destinado ao desenvolvimento agrícola. Em 2009, uma missão da Equipe de Tarefas de Alto Nível da Organização das Nações Unidas sobre a Crise Alimentar Mundial deplorou “o abandono do setor agrícola e da produção nacional nas três últimas décadas”. Esse grupo também criticou o governo haitiano, outros países e agências não governamentais pela “multiplicidade de estratégias e programas, muitas vezes contraditórios”, bem como pelas “intermináveis conferências que não apresentam nenhum resultado concreto”.
Outros problemas, como o inadequado sistema de posse de terras, o desmatamento, a degradação ambiental e a falta de sementes, fertilizantes e estradas, têm sua parte no colapso da produção agrícola. Mas o setor também tem que lidar com a inundação de produtos importados, mais baratos porque muitas vezes são subsidiados, especialmente o arroz norte-americano. Esse fenômeno se agravou a partir de 1995, quando Porto Príncipe reduziu as tarifas alfandegárias sob pressão de Washington e das instituições financeiras internacionais.
No começo da década de 1980, o Haiti importava menos de 20% de seus alimentos, e agora compra mais de 55% no exterior, sobretudo dos Estados Unidos e da República Dominicana. Desde o terremoto de 2010, o governo e os doadores estrangeiros lançaram uma série de programas para resolver essa situação, refazendo estradas, dragando canais e ajudando a melhorar a produtividade agrícola.
Porém, em Grande Asne, uma das províncias mais verdes e produtivas do país, os agrônomos estão preocupados. “Grande Asne era o celeiro para outras províncias”, disse Vériel Auguste. “Mas não é mais. Estamos perdendo esse potencial”. Auguste tem uma horta onde cultiva árvores, cereais e tubérculos, com os quais procura entusiasmar outros integrantes da cooperativa que integra. No entanto, as hortas próximas estão vazias, contou.
“As pessoas deixaram a terra” por falta de apoio técnico e porque seus cultivos não podem competir com os alimentos mais baratos que chegam do exterior, acrescentou Auguste. “Não longe daqui, há uma série de belos campos com boa terra. Mas estão fechados. As pessoas foram embora”, ressaltou. Durante a maior parte de 2012, e até começo deste ano, perto das terras de Auguste eram inúmeros os cartazes sobre um programa de ajuda alimentar que, segundo ele e vários especialistas, contribuiu para expulsar os agricultores de suas terras.
Embora só tenha fornecido alimentos para 18 mil famílias neste país de dez milhões de habitantes, o programa administrado pela organização internacional contra a pobreza Care, aprovado por Porto Príncipe, demonstrou que a ajuda alimentar pode ser uma arma de dois gumes. Com financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), o programa Tikè Manje (Cupom de Alimentos) distribuía vales para compra de produtos como arroz, óleo e feijão até agosto deste ano, a maioria norte-americanos.
A iniciativa estava desenhada originalmente para ajudar as vítimas do furacão Tomás, que em novembro de 2010 afetou severamente plantações haitianas. Mas foi lançado 11 meses depois e só entrou em funcionamento em 2012, mais de um ano após a tempestade. No começo, beneficiaria 12 mil pessoas, mas foi estendido para 18 mil depois que outro furacão, o Sandy, atingiu o país.
A demora, provavelmente, foi causada pelo fato de a zona danificada pelo Tomás “já ter começado a se recuperar”, opinou Jean Robert Brutus, diretor de outra iniciativa de ajuda, desta vez governamental, chamada Aba Grangou (Acabemos Com a Fome), que se associou ao programa Tikè Mange. Contudo, segundo Brutus, “como já estava aprovado, o governo dos Estados Unidos decidiu implantá-lo”.
O escritório da Care no Haiti apresentou outro motivo. O programa foi uma espécie de “ensaio” de um novo sistema de cupons para compra de alimentos, no qual a companhia de telefonia Digicel, com sede na Jamaica, transfere dinheiro aos beneficiários. A Digicel e o governo haitiano ficam com uma porcentagem cada vez que é feita uma dessas transferências de dinheiro.
Foi “simplesmente um teste em certas regiões para ver se podemos implementá-lo no resto do país”, explicou sua coordenadora, Tamara Shukakidze, em entrevista concedida em março deste ano, quando o Tikè Manje ainda estava em andamento. Na época, a Care esperava participar de um novo projeto de US$ 20 milhões, financiado pela Usaid, para criar uma “rede de segurança social” que incluiria vale para alimentos, segundo o porta-voz dessa organização, Pierre Seneq.
Agricultores e agrônomos como Auguste ainda se indignam com o programa de cupons, pois os beneficiários só podiam adquirir produtos norte-americanos e não os locais. “Chamam o programa de Derrotemos a Fome, mas, para mim, é Longa Vida à Fome”, opinou Auguste. Dejoie Dadignac, coordenadora da Rede de Produtores Agrícolas de Dame Marie, garante que a federação de 26 organizações que dirige estava consternada.
“Em cada um dos pequenos negócios que visitamos, mesmo os que antes vendiam cimento ou chapas de alumínio, víamos um cartaz que dizia: Usaid”, contou Dadignac em uma entrevista de dezembro de 2011. “Uma publicidade na rádio local dizia que eram distribuídos bananas e fruta-pão às pessoas, mas não víamos isso. Vimos arroz, espaguete e óleo, enquanto nossos produtos ficavam de lado”, afirmou.
Consultado a respeito, Seneq respondeu que os futuros programas utilizarão produtos locais e, portanto, “contribuirão com a economia em lugar de promover os alimentos estrangeiros”. No dia 27 de setembro, a Usaid anunciou que a Care havia obtido contrato para um novo programa de cupons de alimentos para 250 mil pessoas. Quando perguntado como seriam distribuídos os vales, e se estes serviriam para adquirir produtos locais, Seneq prometeu dar detalhes, mas nunca cumpriu sua palavra.
O novo esquema é financiado em parte por um fundo de ajuda alimentar da Usaid, o Food for Peace (Comida Pela Paz), que exige que a maior parte do dinheiro seja usada para comprar produtos norte-americanos. Nenhum outro plano de ajuda alimentar no mundo tem requisitos semelhantes. O governo de Barack Obama propôs uma série de mudanças nesses requisitos, ao apresentar seu projeto de Lei Agrícola 2013, que inclui ajuda alimentar, cupons e subsídios, mas o texto ainda não foi aprovado pelo Congresso.
Merilus Derius, de 71 anos, acredita que os jovens não se dedicam à agricultura por não terem meios de enfrentar a degradação ambiental e competir com os produtos estrangeiros, que agora são mais procurados pela população. “Antes, os agricultores plantavam sorgo e o moíam. Cultivavam ervilha, plantavam batata, mandioca. Em uma manhã como esta, um produtor podia fazer seu café e depois moía a cana-de-açúcar e a fervia na água, e comia pão de mandioca, e tinha boa saúde. Quando vivíamos de nossa horta, éramos independentes”, lembrou Derius.
Na meseta central do Haiti alguns dizem que outro programa alimentar está causando uma explosão demográfica. Como parte de seu plano de assistência agrícola e de luta contra a insegurança alimentar, a organização não governamental World Vision distribui produtos norte-americanos para mulheres grávidas e mães precoces. Às vezes citada como “programa de mil dias”, a iniciativa também procura conseguir que as mulheres recebam cuidados médicos, tenham acesso à educação e se integram a “clubes de mães”, além de, em alguns casos, obter sementes para cultivar.
“É por isso que há mais crianças por aí”, observou Carmène Louis, uma das beneficiárias. “Para entrar no programa precisa estar grávida. Agora se vê meninas grávidas aos 12 ou 15 anos. Creio que isso é um verdadeiro problema para Savanette”, pontuou. Pesquisadores não puderam confirmar isso devido à falta de registros, mas um informe da Usaid deste ano aponta um “aumento no número de grávidas em uma área rural, e a possibilidade de esse fenômeno estar vinculado com as percepções públicas sobre o programa de mil dias”.
Consultado sobre o possível aumento de gravidezes, o secretário de Estado para o Renascimento da Agricultura, Fresner Dorcin, disse não estar familiarizado com o caso e que não podia descartá-lo. “Trabalhei na meseta central por 15 anos”, disse. “Se contasse sobre os efeitos perversos dos programas que vi pessoalmente… Há muitos”, destacou. Envolverde/IPS
* A Haiti Grassroots Watch é uma associação entre AlterPresse, Sociedade de Animação e Comunicação social (Saks), Rede de Mulheres de Rádios Comunitárias (Refraka), rádios comunitárias da Associação de Meios Comunitários Haitianos e estudantes do Laboratório de Jornalismo da Universidade do Estado do Haiti.