Oxford, Grã-Bretanha, outubro/2014 – Quando Ibrahim al Badri al Samarrai adotou o nome de Abu Bakr al Bagdadi al Huseini al Quraishi e se manifestou como o Amir al Muminin (comandante dos fiéis) Califa Ibrahim do autroproclamado Estado Islâmico, chamou a atenção do mundo inteiro.
A escolha destes nomes é interessante e simbólica. O título Abu Bakr se refere ao califa que sucedeu o profeta Maomé após sua morte no ano 632.
O termo Huseini evoca o imã Husein, neto do profeta e mártir. Seu martírio, na agora cidade iraquiana de Karbala, em outubro do ano 680, é considerado um momento crucial na história do Islã e é celebrado pelos xiitas com elaboradas cerimônias.
Tanto sunitas quanto xiitas consideram o imã Husein um grande mártir que deu sua vida em defesa do Islã e contra a tirania.
Por fim, Al Quraishi provém do gentílico Quraish, a tribo do profeta Maomé.
Segundo a biografia que se encontra nos sites jihadistas na internet, Al Bagdadi é um descendente direto do profeta, mas, curiosamente, seus ascendentes pertencem ao ramo xiita dos imãs que descendem de Fátima, filha de Maomé.
Apesar da intransigente hostilidade de Al Bagdadi em relação aos xiitas, esta suposta genealogia poderia responder à intenção de se apresentar como legítimo filho dos descendentes do profeta que são venerados tanto por xiitas como por sunitas.
A mesma biografia diz que Al Bagdadi nasceu em 1971, perto de Samarra, no Iraque, e que obteve doutorado em estudos islâmicos na Universidade de Bagdá.
Também afirma que era um clérigo na mesquita do imã Ahmad ibn Hanbal, em Samarra quando, em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque.
Um alto funcionário da segurança oficial no Afeganistão afirma que Al Bagdadi se estabeleceu em seu país na década de 1990 e ali recebeu treinamento como jihadista entre 1996 e 2000, sob comando de Abu Musab al Zarqawi, dirigente da Al Qaeda.
É provável que Al Bagdadi tenha abandonado o Afeganistão junto com líderes talibãs após a invasão norte-americana em outubro de 2001, com destino ao Iraque, onde Al Zarkawi e outros militantes, talvez Al Bagdadi entre eles, organizaram a filial da Al Qaeda nesse país.
Em setembro de 2005, Al Zarqawi declarou a guerra total aos xiitas no Iraque, depois da ofensiva conjunta do governo xiita iraquiano e dos Estados Unidos contra os insurgentes na cidade sunita de Tal Afar. Mas foi eliminado em junho do ano seguinte por militares norte-americanos.
Segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Al Bagdadi esteve detido em Camp Bucca entre fevereiro e dezembro de 2004, mas outras fontes afirmam que esteve internado entre 2005 e 2009. Em todo caso, se registra uma longa militância no Afeganistão e Iraque.
Em 2011, após a eclosão da Primavera Árabe e do surgimento de protestos contra o governo de Damasco, alguns governos ocidentais, junto com Arábia Saudita e Turquia, decidiram derrubar o regime do presidente sírio Bashar al Assad mediante treinamento e financiamento de forças insurgentes.
Isso deu a Al Bagdadi a oportunidade de atrair numerosos militantes armados até reunir vários milhares e se lançar novamente ao ataque contra o Iraque xiita a partir da Síria.
Como é sabido, suas forças conquistaram vários territórios da Síria e do Iraque sob a bandeira do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico do Iraque e da Grande Síria (Sham, em árabe) e conhecido pela sigla Isis.
Em 4 de julho de 2014, dia do Ramadã para os muçulmanos e também, sugestivamente, aniversário da independência dos Estados Unidos, Al Bagdadi surpreendentemente emergiu das sombras e pronunciou um sermão na grande mesquita de Mosul, recém-conquistada pelo Isis. Suas palavras demonstraram seu domínio do Corão, sua clareza e sua eloquência.
É, certamente, o mais versado em teologia radical sunita em relação a qualquer outro líder da Al Qaeda, no passado ou no presente.
O sermão de Al Bagdadi tocou temas centrais da doutrina militante sunita e de seus expoentes históricos. Seus apologistas proclamaram que ele “purgou vastas áreas no Iraque e na Síria da sujeira dos safávidas (referência a uma dinastia xiita no Irã no século 16), dos nizaríes (termo depreciativo para os alauíes-xiitas da Síria) e dos apóstatas Conselhos do Despertar (sunitas)”. E acrescentam que “ele estabeleceu o império da lei islâmica”.
Em seu breve sermão Al Bagdadi acusou de heresia os que não acatam sua rígida interpretação do Islã. Citou numerosos versículos do Corão para instigar a luta contra os não crentes e a fidelidade ao mandato divino. Também ressaltou alguns aspectos essenciais, como piedade, observância dos ritos religiosos e dos mandamentos, e a libertação dos oprimidos.
Por fim, defendeu a restauração do califado.
No contexto do Corão, esses termos têm ampla ressonância., mas esses mesmos termos na boca de Al Bagdadi e outros jihadistas ganham um significado completamente diferente, ameaçador, incitando a insurreição armada e a submissão dos não crentes.
As palavras e os fatos de Al Bagdadi e seus seguidores parecem copiados do movimento fundamentalista wahabi, criado por volta de 1745 na Arábia central pelo pregador Muhamad Ibn Abd al Wahab (1703-1792).
O que hoje vemos no Iraque é quase a repetição exata da violenta insurgência sunita nos desertos da Arábia que levou à criação do Estado wahabi, fundado há 200 anos pelo clã Al Saud.
Em 1802, após ter assumido o controle de grande parte da península árabe, o caudilho saudita Abdulaziz atacou Karbala no Iraque, matou a maioria de seus habitantes, destruiu o santuário do imã Husein e saqueou a cidade.
O estabelecimento da dinastia saudita teve como resultado a propagação da versão mais fundamentalista na longa história do Islã. Dela provêm Osama Bin Laden e a Al Qaeda, e agora Al Bagdadi e o Isis, que desde meados deste ano passou a se autodenominar Estado Islâmico (EI).
O jihadismo reduziu as ricas e variadas expressões de civilização islâmica – sua filosofia, literatura, seu misticismo e sua jurisprudência – à “shariá”, a interpretação religiosa do Corão e de outras fontes do Islã convertidas em lei.
As melhores mentes do Islã rechaçam a estreita e dogmática versão da shariá do EI e dos jihadistas e não aceitam que seja elevada a um absolutismo, acima inclusive da racionalidade.
Não há dúvida de que é uma aberração que pretendam justificar em nome do Islã este pensamento enfermo e estes atos de barbárie. Envolverde/IPS
* Farhang Jahanpour é ex-decano da Faculdade de Línguas da Universidade de Isfahan, no Irã, e há 28 anos professor na britânica Universidade de Oxford.