Do acampamento Laranjeira Nhanderu, à beira da BR 163, próximo a Rio Brilhante, nos vem o convite “nois vamos fazer a festa do dia do índio…queremos que vocês venham com a gente. Vamos ter jogos, reza e desfile”. Convite irresistível. Apesar das muitas atividades relacionadas ao abril indígena, fomos ao acampamento. Chegando, nos deparamos com um lindo cenário de uma passarela entre o asfalto e os ranchos de lona preta. Vários metros de TNT vermelho, tendo numa das extremidades cor verde e azul. Ladeada por enfeites de lã e pedaços de tecidos, presos a um barbante. Dois arcos feitos de folhas de palmeira, aninham os adereços da cultura e da luta: mbaraká, cocares, colares, peneira de palha e uns cartazes com crianças da comunidade.
Tudo com tamanha singeleza, simplicidade e beleza, que a gente é tentado a afirmar que esta é uma das obras da arte criativa talvez única entre os Kaiowá Guarani e quiçá de todo o país.
Quando a aldeia desfila a natureza se agita
Desfile ao ar livre. De um lado o vai e vem estridente dos carros, do outro lado uma animada platéia em frente aos barracos. A paisagem alegre que inclui algumas bananeiras, mandioca e arbustos nativos, também tinha seu contraponto: de um lado o asfalto e do outro o arame farpado.
De repente uma cena inusitada. Surge alguém tendo na cabeça uma miniatura de casa de reza. Era o nhanderu Pedro, com seu tembetá (enfeite labial típico dos Kaiowá), a kurusu (cruz) e o mbaraká. Símbolos fortes e uma reivindicação, que veio a ser a tônica das atividades que culminaram com o solene desfile dos jovens, crianças e adultos, trazendo a miniatura da casa de reza.
O desfile teve a abertura feita com os nhanderu e nhandesi (líderes religiosos). Foi o desfile da dignidade e altivez de um povo que resiste a séculos de opressão, cuja esperança férrea não o deixa desanimar por mais dura e cruel que seja a realidade a qual está submetido.
Logo em seguida, após abençoado o espaço e a atividade, duas crianças gêmeas, de aproximadamente dois anos, Daniele e Emanuele, netas do líder Zezinho, desfilaram na passarela ao ar livre, esbanjando simpatia e alegria. O mesmo aconteceu na sequência, com o desfile dos adolescentes e depois dos jovens. Com seus rostos pintados, roupas típicas, corpos esbeltos, demonstravam muita autoestima e beleza. Foram cenas quase inimagináveis. Nada semelhante, nos meus 40 anos de vivência com os povos indígenas no Brasil, eu havia presenciado.
Celebrar e festar é preciso
Os motivos do belo e inédito espetáculo ao ar livre foram lidos pelo líder Zezinho no final do desfile. Num documento, em que a mensagem mal conseguia sair do esconderijo atrás das palavras em português, ele reafirmou a decisão dos Kaiowá Guarani de continuarem mantendo sua cultura. Concretamente é isto que a comunidade estava fazendo ao celebrar seus rituais, de maneira especial, no mês de abril. Afirmou que o planeta Terra foi abençoado pelos indígenas que nele moram há milhares de anos. E é graças a esta benção do planeta e do Brasil, que por aqui não vão acontecer coisas horríveis como em outras partes do mundo.
A forte mensagem estava expressa em três cartazes, nos quais estavam expressos os desejos e exigências da comunidade. Todos eles aludem aos perigos porque estão passando diariamente, ao lado de uma das rodovias mais movimentadas do país, e pedem socorro, ou melhor, a imediata volta às suas terras, suas aldeias. “Nois mulheres indígenas, morador nesse acampamento na beira da BR 163, todos nós estamos pedindo socorro para retirar tão logo a nossa família daqui, no lugar perigoso. Ajuda nois pode retirar a nossa família desse lugar perigoso. Porque o nosso lugar sem perigo é somente na área da aldeia dos indígenas”. No cartaz das crianças “Nois criança indígena o futuro do Brasil, que moramos no acampamento da BR 163 todos estamos pedimos para sair daqui. Porque todos queremos sair daqui enquanto nois estamos vivos, porque esse lugar é bastante perigos para todos. Por isso nois estamos, pedimos socorro para sair daqui porque nois queremos a nossa terra”. Os jovens se expressam no mesmo sentido.
Quando o Sol foi se pondo, depois de mais de duas horas de celebração e desfile, uma alegria contagiante animava todos os presentes. “Este é nosso ritual de vida e despedida”, dizia uma das lideranças.
Povo Guarani Grande Povo
Abril indígena, em Laranjeira Nhanderu, 2011.
* Egon Dionísio Heck é assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do Mato Grosso do Sul
** Publicado originalmente pela Adital.