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“Alguns indivíduos são tão ricos quanto países inteiros”

O secretário-geral da Unctad, Mukhisa Kituyi, em seu escritório. Foto: Unctad
O secretário-geral da Unctad, Mukhisa Kituyi, em seu escritório. Foto: Unctad

 

Genebra, Suíça, 16/6/2014 – Ao completar 50 anos de vida, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) está empenhada em uma luta pela redução das desigualdades econômicas e sociais no mundo.

Em comparação com 50 anos atrás, as desigualdades internas dos países “aumentaram hoje em um número alarmante de países, tanto ricos como pobres”, afirmou o secretário-geral da entidade, o economista queniano Mukhisa Kituyi. “Alguns indivíduos hoje são tão ricos quanto países inteiros”, disse em entrevista à IPS, na sede da Unctad, em Genebra.

A Unctad nasceu impulsionada pelos países do Sul e por essa razão no concerto da Organização das Nações Unidas (ONU) é conhecida como “a agência dos pobres”. Ao criarem a Unctad, em 16 de junho de 1964, os Estados membros já advertiram que “o desenvolvimento econômico e o progresso social devem ser a preocupação comum do conjunto da comunidade internacional”, afirmou Kituyi.

Sua assembleia constitutiva encomendou à nova instituição o mandato de “formular princípios e políticas sobre comércio internacional e os problemas relacionados com o desenvolvimento econômico”. Kituyi pontuou que tais diretrizes representaram “um movimento além do que antes levara ao estabelecimento das instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) e do Acordo Geral de Tarifas Alfandegárias e Comércio (Gatt), antecessor da atual Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essa singularidade e sua proximidade com os países do Sul em desenvolvimento colocaram a Unctad na mira dos países do Norte industrial e das instituições que giram ao seu redor. Em seus 50 anos, a Conferência superou numerosas ofensivas destinadas a modificar suas políticas favoráveis ao Sul e a reduzir seus orçamentos. Kituyi, que assumiu a direção da organização em setembro do ano passado, falou à IPS sobre sua visão do cenário social e econômico em que se desenvolve a Unctad.

IPS: Como vê a reação da sociedade diante das desigualdades?

MUKHISA KITUYI: A desigual distribuição da renda e da riqueza recentemente exacerbou paixões e estimulou o debate publico de maneira nunca vista em mais de uma geração. Através do mundo, pessoas com diferentes culturas, religiões e opiniões políticas concordam cada vez mais que uma sociedade desigual não é apenas injusta, mas também improdutiva.

IPS: Algum exemplo?

MK: A desigualdade capturou nossa imaginação, como evidencia o recente e surpreendente sucesso do livro do economista francês Thomas Piketty, O Capital no Século 21. Falar de impostos globais (como propõe Piketty) para reduzir as desigualdades, algo impensável até uma década atrás, apareceu nas manchetes e nas agências de notícias mais conservadoras e liberais.

IPS: Que conclusão tira desse texto, convertido em um fenômeno de venda e comentário?

MK: A popularidade do livro do professor Piketty é, sobretudo, uma reflexão sobre a vasta compreensão da sociedade em conjunto, de que as práticas econômicas não sustentáveis voltadas para o acúmulo excessivo de riqueza não são apenas injustas, mas também podem levar a crises e à paralisia, e inclusive a conflitos.

IPS: Qual tem sido a reação da comunidade internacional?

MK: Nas Nações Unidas em Nova York, diplomatas de cada parte do mundo agora trabalham para concertar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que vão continuar do ponto em que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio terminarem em 2015. Além das óbvias preocupações ambientais sobre a mudança climática, a sustentabilidade econômica e social figuram no centro dessas discussões.

IPS: O que se contempla para o caso das desigualdades?

MK: Um objetivo, o de reduzir a desigualdade dentro e entre países até 2030, consta da lista em exame atualmente pelos Estados membros da ONU. Essa é uma direta consequência do crescente consenso sobre os efeitos prejudiciais da desigualdade sobre a prosperidade duradoura.

IPS: Quais antecedentes existem na matéria?

MK: Nosso recém-descoberto e crescente interesse em reduzir as desigualdades e assegurar a prosperidade para todos deve se basear na firme aversão à desigualdade que tem estado no seio do trabalho de meio século da ONU.

IPS: E no caso de sua organização?

MK: Quando a Unctad foi fundada, exatamente há 50 anos, nossos Estados membros disseram especificamente que “a divisão do mundo em áreas de pobreza e abundância seja desterrada e a prosperidade alcançada por todos”.

IPS: O que aconteceu nessas cinco décadas?

MK: A diferença fundamental entre a atualidade e há 50 anos é a natureza das desigualdades que enfrentamos. A nova economia global trouxe consigo tão grandes esperanças quanto imensas desigualdades. Meio século depois da fundação da Unctad vemos promissoras diminuições de desigualdade entre países, com em várias nações em desenvolvimento, em particular os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Também outros experimentaram resultados de crescimento significativos e moderado êxito na transformação das estruturas de suas economias da agricultura para a indústria e os serviços.

IPS: Quais estratégias foram seguidas?

MK: Ainda há 15 anos, quando formulávamos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, o foco era justamente reduzir as desigualdades entre países mediante a redução da extrema pobreza por meio do crescimento. A globalização, que permitiu reduzir a pobreza pela metade nos últimos 20 anos, agiu como uma faca de dois gumes, deixando para trás os menos acomodados, tanto nos países mais pobres como também nas economias mais avançadas.

IPS: E quais políticas são necessárias agora?

MK: O papel do sistema multilateral, de facilitar bens públicos globais a quem saiu perdendo com a globalização, nunca foi tão necessário. Por isso, quando celebramos os 50 anos da Unctad sabemos que o mundo pode ter mudado desde sua criação, mas a necessidade de um espaço inclusivo de diálogo, que nossa Conferência proporciona, é mais imperiosa do que nunca.

IPS: E com relação a cada área específica da economia?

MK: Para reduzir a desigualdade em nossos Estados membros, o comércio deve servir de salvador e não de demolidor, as finanças devem construir e não destruir e o progresso tecnológico deve servir aos interesses de todos os segmentos da sociedade.

IPS: Como se leva isso à prática?

MK: São necessárias estratégias de desenvolvimento nacional acertadas para garantir esses objetivos, em particular nos países menos desenvolvidos e na África. Em todas essas áreas, as experiências da Unctad são incomparáveis e ao entrar na segunda metade de nosso século reforçaremos nosso trabalho de apoiar essas áreas críticas, para servir tanto aos países em desenvolvimento quanto aos industrializados. Envolverde/IPS