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"Alimento é afeto, cultura, humanidade"

José Augusto Taddei é livre-docente em Nutrologia Pediátrica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde orienta os programas de mestrado e doutorado na área. Uma de suas lutas é tentar impedir que o momento da refeição torne-se um problema na vida de pais e filhos. Por isso, defende que é preciso manter hábitos alimentares mais saudáveis e regulamentar a comunicação mercadológica de alimentos dirigida ao público infantil.

Nesta entrevista para o Projeto Criança e Consumo (CeC), do qual também é conselheiro, Taddei lembra que o alimento é o último traço cultural que desaparece em uma sociedade. Assim, além de nutrir, a comida também reflete aspectos socioculturais importantes. E lamenta: “O que é criado pela indústria é uma cultura uniforme e muito sem graça porque não tem a ver com troca, com preparo, com relações”.

Qual é o cenário da obesidade infantil no Brasil e no mundo?

Se o ritmo se mantiver, as projeções para 2016 indicam que a obesidade atingirá 8,3% das crianças – não estou falando de sobrepeso –, o que representará 1,5 milhão de crianças menores de cinco anos obesas. O que sabemos é que nas classes A e B já não há tanta obesidade porque as pessoas são mais esclarecidas. É difícil ver um jovem esclarecido que não vá à academia e que não faça restrição alimentar.

É necessário fazer restrição alimentar tão cedo?

Hoje o mercado oferece muitas opções de alimento e o jovem passou a ser consumidor mais precocemente. As indústrias de alimentos focam nas crianças e nos adolescentes porque são pessoas que estão formando seus padrões de consumo, seus estilos de vida e seus hábitos alimentares. Eles são extremamente influenciáveis, também pelo processo de formação da individualidade. E o alimento vem sendo progressivamente algo que o adolescente tem de lidar constantemente.

Por que são oferecidos produtos com grande quantidade de gordura, sal e açúcar?

A quantidade de alimentos em termos de número de itens, é altamente competitiva. Só a Nestlé tem mais de 150 mil itens de alimentos comercializados nos Estados Unidos. Nas prateleiras dos supermercados, não cabe mais do que 90 mil itens. É uma luta para conseguir colocar um produto nas prateleiras. Nessa luta existe uma campanha forte de marketing pensando em divulgação e em toda a parte de sedução do consumidor. Além disso, a indústria tenta desenvolver produtos palatáveis. E qual a alternativa para fazer um produto palatável? Aumentar açúcar, aumentar gordura, aumentar sal, diminuir fibra porque ele fica mais fácil de mastigar e dissolve na boca.

Então é verdade que o alimento mais gostoso é aquele menos saudável?

O mais gostoso provoca apenas o prazer imediato. Ele não dá prazer depois de três horas. Pelo contrário, ele pode até causar problemas na função intestinal, cansaço e sensação de desânimo. O excesso de carboidrato dá apatia, mas no momento em que você está comendo é o que mais agrada, especialmente aos humanos. Isto tem explicação na nossa evolução. Quando nós éramos catadores e tínhamos de pegar frutos, flores e raízes do chão, aqueles que tinham aversão pelo amargo, pelo azedo e pelo ácido cuspiam o alimento e, por consequência, o veneno. Na natureza, em geral, esses sabores são associados aos venenos. Quem gostava do doce, do gorduroso, sobreviveu e nós somos filhos daqueles que sobreviveram. A forma que nós temos de superar o que já foi uma vantagem há milênios e que hoje é uma grande desvantagem na sociedade moderna é criar situações prazerosas, gratificantes, emocionalmente de troca e de acolhimento junto com o consumo de alimentos amargos, azedos, com pouco sal. Com isso, a criança começa a se condicionar.

Isto tem de ser trabalhado com uma criança pequena?

Sim. Você oferece uma laranja doce, depois uma menos doce e progressivamente, até que ela vai comer uma laranja azeda e gostar, principalmente se for no colo da mãe, fazendo “coceguinha”, dando risada. Este é um processo de formação de hábitos. Alimento não é só nutriente. Alimento é afeto, cultura, humanidade e é disso que a gente vive.

Os alimentos distribuídos pelas grandes indústrias não têm a cara da cultura local, porque eles são iguais em todo o mundo. Como isto afeta a formação cultural da criança?

As nossas crianças não comem mais milho, não comem tapioca, mandioca, que eram coisas da nossa culinária. O que é criado pela indústria é uma cultura uniforme e muito sem graça porque não tem a ver com troca, com preparo, com relações. Antes, as pessoas diziam “nada é melhor do que o tempero da minha mãe”.  Era o tempero da infância, do afeto. Os hábitos alimentares são o último traço que desaparece numa sociedade. As pessoas podem esquecer o nome do antepassado, a língua, mas quando se reúnem, comem a comida da região de onde vieram. Os japoneses, quando se reúnem, comem comida japonesa, os libaneses comem comida libanesa e assim por diante.

Qual é a importância de uma criança fazer as refeições com os pais? Quem não tem essa experiência perde muito?

Perde muito. Mas não quero ser saudosista, nem voltar ao tempo em que a mãe não trabalhava fora de casa. A mulher hoje é geradora de renda. Não dá mais para fazer como era. O problema é que a gente observa o extremo oposto, a família que nunca se reúne em volta da mesa, nem em situações de festa, de comemoração. Tudo chega em casa pronto e as pessoas não preparam mais, não dividem esse processo de doação, de troca.

Por que essa mudança? Os alimentos preparados são economicamente mais vantajosos?

Os alimentos que já vêm pré-preparados e próprios para o consumo imediato são, em média, três vezes mais caros que a cesta básica. Logicamente, não é por causa do preço do alimento, e sim por causa da embalagem e do valor agregado. Por exemplo, um refrigerante tem o mesmo preço de um litro de leite. O leite é nutritivo, enquanto o refrigerante é água com açúcar.

Então porque há um aumento cada vez mais significativo de obesos entre a população menos favorecida?

A população urbana de mais baixa renda, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, é a que mais sofre com a obesidade. Hoje, você consegue consumir alimentos com alta densidade energética, muito açúcar e muita gordura a preços acessíveis. Mas essas pessoas não sabem dos efeitos deletérios desse alimento e, ao mesmo tempo, são suscetíveis aos apelos de prazer como todo o mundo. Comem gordura e doce achando que aquilo é uma forma de ser feliz. Acabam confundindo consumo excessivo com a “receita da felicidade”. Mas esta é a receita da vida curta. Por outro lado, são pessoas que estão sendo privadas de dignidade, que não têm opções de lazer além de assistir à televisão. A única forma de ter identidade e se sentir alguém é comendo, bebendo, participando de uma igreja ou vendo TV.

O que já se sabe sobre o consumo constante de produtos industrializados?

Existem pesquisas com animais que demonstram que existem níveis seguros de consumo desses alimentos, mas não existem pesquisas com seres humanos a longo ou longuíssimo prazo. E em cima disso, os naturalistas dizem que estamos expondo a humanidade a situações de complicação. Nós não sabemos, por exemplo, se acontece um efeito intergeracional. Dizem que este é o preço que nós temos de pagar pelo progresso. O que não quer dizer que não tenha efeito nenhum, mas estamos dentro da lei e do que a comunidade científica achou que era razoável para viabilizar a produção e o consumo em massa nos grandes centros urbanos. O problema é quando essas normas não são respeitadas. E, mesmo respeitando as normas, nós temos alguns riscos.

Pensando na realidade das famílias hoje, como deve ser o momento da refeição para as crianças?

A alimentação não pode ser o único momento de prazer, nem deve dominar a vida das crianças. Quando isto acontece, a criança começa a substituir as coisas que são mais trabalhosas por algo que está ali. E quando se associa à televisão, a situação piora. A pessoa começa a querer ficar sedentária, isolada, vendo televisão e comendo. Aí vira um ciclo vicioso porque, junto com isso, vem a culpa. Torna-se uma pessoa cujo nível de gratificação, de compreensão da vida é muito limitado. Pode ter a função intestinal dificultada, ter mais cáries por causa do açúcar, problemas articulares por causa do peso excessivo. Nas dobras, começa a ter coceira, micose, passa a ter um cheiro típico, e, com isso, começa a se inibir e não querer se socializar.

Mas muitas pessoas associam a imagem do “gordinho” a uma pessoa alegre.

Em muitos casos, a pessoa tenta compensar o problema da obesidade sendo uma pessoa alegre, divertida, brincalhona, que não liga para nada. Mas, na verdade, pode ter a autoestima lá no chão. É o cara que só fica no gol porque ninguém o escolhe para jogar no time. Quando começa a história dos namorinhos, ninguém se interessa por ele. Ele substitui o convívio por alimentos. E, logicamente, é discriminado pelos outros. Segundo uma pesquisa americana, quando conseguem emprego, o salário é menor.

Obesidade atinge apenas quem tem tendência ou quem não tem essa tendência também pode se tornar obeso simplesmente por causa do excesso de alimentação?

Existe uma coisa chamada de metabolismo basal, que varia um pouco. Mas, ao longo dos anos, se você tiver 5% menos consumo de calorias por hora do que eu, daqui a dez anos, eu, comendo a mesma coisa, serei obeso e você não será porque eu vou acumular 5% mais que você. Esta tendência sempre existiu e nunca houve epidemia de obesidade. Hoje existe uma epidemia por causa do sedentarismo. Antes, a única forma de brincar era ir para a rua e brincar de pega-pega. Não tinha opção de ligar a televisão. O ambiente contribui para a obesidade. Além do excesso de oferta de alimentos, você tem a propaganda dizendo que isso é bom, como acontecia com a propaganda de cigarro.

Como resolver o problema da obesidade?

Não é fácil. O mais sério é que as escolas não ensinam e os próprios funcionários de saúde, de uma forma geral, não estão preparados para lidar com essa questão. Se você pegar um pediatra, um nutricionista, e perguntar o que acha de dar macarrão instantâneo até um ano de idade eles vão dizer que não pode. Mas depois dessa idade alguns desses profissionais não sabem mais o que dizer porque isso não está normatizado. Parece que os modelos de educação e assistência à saúde e à nutrição continuam nos anos 1980, mas nós estamos quase na década do Século 21. Nós estamos perdidos nesse mundo de alimentos e eu acho que alguém está se beneficiando disso.

De que forma o Estado pode gerar políticas públicas para amenizar esse problema?

Acho que o Estado fica no limite do que a sociedade é capaz de aceitar. Se a sociedade não estiver conscientizada, não adianta querer impor. Tem de ter um processo de educação, de evolução, de compreensão para que se consiga fazer a regulamentação da propaganda dos alimentos infantis, por exemplo. A sociedade está percebendo, e está ficando vergonhoso fazer esse tipo de publicidade. As indústrias já estão diminuindo, independentemente da lei ter sido aprovada. Acontece que, em uma sociedade capitalista, existe a tendência de que as questões do dinheiro sobrepujem o bem-estar das pessoas. É necessário dar liberdade para escolha, mas isso não acontece porque existe um processo de condicionamento pesadíssimo, com bilhões de dólares sendo investidos. O Estado pode propor impostos diferentes para determinados tipos de alimentos. Pode regulamentar a propaganda, propor a desaceleração da incorporação de novos alimentos obesogênicos.

* Publicado originalmente pelo Instituto Alana – Projeto Criança e Consumo e retirado do site Mercado Ético.