Os estudantes que não correspondiam às suas expectativas, no entanto, não eram agraciados pela mais cobiçada constelação de tinta bic de todo o primário.
Isso aconteceu na primeira série, quando eu tinha sete anos, mas até hoje não me sai da memória. Era uma segunda-feira, dia em que a professora Ana Lúcia devolvia corrigidos os trabalhinhos da turma – tarefa à qual, imagino, ela se dedicava durante os finais de semana, entre um e outro afazer doméstico. O fato é que, quando a segunda-feira chegava, além de levarmos o restinho de euforia do sábado e do domingo para a sala de aula, eu e meus coleguinhas éramos acometidos por essa ansiedade extra de receber as atividades já avaliadas pela professora.
Ana Lúcia era cheia de esmeros: quando algum aluno ou aluna se saía muito bem, ela desenhava estrelinhas na cabeceira da folha e escrevia coisas como “parabéns!” ou “excelente!”. Os estudantes que não correspondiam às suas expectativas, no entanto, não eram agraciados pela mais cobiçada constelação de tinta bic de todo o primário. Mas a professora Ana Lúcia era boazinha e nunca deixava de registrar frases de incentivo. “Juntos vamos melhorar o seu desempenho!” é a que eu mais lembro de ter lido ao longo do ano – não no meu próprio caderno, pois a verdade é que àquela altura eu ainda era uma “aluna exemplar”, como a direção da escola costumava repetir aos meus pais.
Naquela segunda-feira, entretanto, esse conceito de boa aluna começou a virar farelo na minha cabeça. Sentada ao lado do meu querido colega Dieguinho, eu senti – talvez pela primeira vez – aquele comichão de que “Opa! Há algo de podre no reino da Dinamarca”. O causo é que o desenho que o Dieguinho pintou não estava adequado ao gosto da professora. Tratava-se de uma reprodução mimeografada da personagem de quadrinhos Mônica, criada pelo cartunista Maurício de Souza, e a qual eu havia colorido exatamente como mandava o figurino das revistinhas: o vestido vermelho, a pele amarelada, o coelhinho de pelúcia azul.
Mas o Dieguinho não. Aos seis anos e meio, aquele menino doce, de olhos bem azuis, sardas e um pouco baixo para a nossa idade, achou por bem subverter a ditadura das cores e pintou a sua Mônica como bem quis: um perna roxa e a outra laranja, os cabelos verde-limão, sim, por que não? E quem disse que os dois braços têm que ter a mesma tonalidade? Diferente de mim, o Dieguinho tomou o desenho livremente como um espaço para a sua própria produção artística, mas a recompensa pela ousadia foi a reprovação da professora, além de uma boa dose de gargalhadas e chacotas dos outros coleguinhas.
Eu não achei a menor graça e estava convencida de que o desenho do Dieguinho estava muito mais bonito e “correto” que o meu, uma típica “aluna exemplar”. Além de expressar-se artisticamente, ao pintar o desenho de acordo com o seu próprio senso estético, o Dieguinho estava questionando uma lógica de que “existem coisas que são assim e ponto final”. Mas a contestação não é vista com bons olhos pela escola. Ao contrário, parece que o papel central da educação é “satisfazer” a nossa criatividade, como se as interrogações tivessem que ser “sanadas” sempre com uma resposta.
Nem mesmo a professora Ana Lúcia, sem dúvida uma das mais adoráveis e empenhadas educadoras que tive, foi capaz de fazer uma análise sobre o ocorrido. Pior ainda: imagino que a própria Ana Lúcia tenha sido formada para reproduzir esses “saberes” tão universais quanto irrefletidos que definem o que é certo e errado. Naquela fatídica segunda-feira, infelizmente, quem pagou o pato por este modelo “educativo” foi o meu colega Dieguinho.
Já faz muitos anos que não o vejo e espero que, na contramão do que lhe impunha a escola, ele tenha crescido com base no seu senso crítico. Que não seja, portanto, um “home-feito”, como certamente o mundo lhe exige cotidianamente, mas que seja um homem em construção. A mim, Dieguinho ensinou que ser uma “aluna exemplar” não é seguir roteiros predeterminados.
De alguma maneira, a Mônica pós-punk de pernas bicolores do meu colega Dieguinho me apontou um caminho diferente de aprendizagem. Nele, não é possível encontrar fórmulas prontas nem respostas imediatas, mas sim um vasto jardim de interrogações. Cada dúvida semeia uma curiosidade e assim se plantam novas descobertas.
Claro, não é um processo tão imediato quanto marcar um “x” na alternativa correta ou reproduzir realidades idênticas às que nos contam os gibis e outros livros de história. No entanto, pode ser que o ato de estudar tenha mais a ver com deixar-se levar por certas subjetividades e perseguir a própria inquietação intelectual do que simplesmente aceitar uma coletânea de realidades incontestáveis.
* Nanda Barreto é jornalista e autora do blog http://transitivaedireta.blogspot.com.
** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.