“Está acontecendo na Amazônia um processo avassalador de destruição que pode ser comparado ao período da ditadura militar da década de 1970”, constata o professor da Universidade Federal do Acre, Elder Andrade de Paula.
“É possível continuarmos com essa lógica que preside a ideologia do desenvolvimento?”, questiona Elder Andrade de Paula, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Professor da Universidade Federal do Acre – UFAC, ele tem acompanhado os impactos gerados pelos grandes empreendimentos nos povos da Amazônia e é categórico ao dizer que as comunidades locais não se beneficiam da exploração madeireira e energética. “Todas as famílias que vivem do Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes estão cadastradas no programa Bolsa Família, apesar de praticarem o manejo comunitário de madeira há quase uma década. Segundo depoimento de uma das principais lideranças do projeto, a renda que essas pessoas obtêm anualmente com a venda de madeira é 2,500 reais porque vendem o metro cúbico de madeira a 90 reais para a Laminados Triunfo, que é a grande madeireira que domina este pedaço”, denuncia.
Crítico do conceito de desenvolvimento sustentável, ele argumenta que o termo “é somente uma forma de tentar dar outra coloração para um processo que não tem solução”. Na entrevista a seguir, Elder Andrade de Paula também se opõe à política de financiamento do BNDES, que fortalece o modelo “de exploração em curso”, e argumenta que a construção da estrada que liga San Ignacio de Moxos até Villa Tunari, em Cochabamba, põe em xeque a soberania boliviana. “Para enfrentar o poder estadunidense, o governo boliviano teve que fazer alianças regionais com os governos venezuelano e brasileiro. No caso brasileiro, a fatura que o governo tem cobrado é muito alta. (…) Como o Brasil é o Estado mais poderoso entre os envolvidos diretamente, ele acaba interferindo na capacidade interna do Estado boliviano de decidir soberanamente sobre o que é mais adequado para o conjunto da sua população”.
Elder Andrade de Paula é licenciado em Ciências Agrícolas, pela UFRRJ, especialista em Ciências Sociais com enfoque na Amazônia, pela UFAC, mestre e doutor em Desenvolvimento Agrícola e Sociedade. Atualmente é docente dos programas de Mestrado em Desenvolvimento Regional e de Ecologia e Manejo de Recursos Naturais, da Universidade Federal do Acre – UFAC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as contradições das políticas climáticas e da economia verde?
Elder Andrade de Paula – São muitas. A primeira delas é que as políticas climáticas e a economia verde não enfrentam os problemas estruturais que geram as mudanças climáticas no mundo, como, por exemplo, o atual padrão da civilização capitalista, denominado por um consumo crescente de mercadorias, que demandam mais e mais energia, e a concentração de renda que acompanha esse movimento. Portanto, todas as políticas que têm sido pactadas internacionalmente, no sentido de “enfrentar” as mudanças climáticas, funcionam como aspirinas para pacientes terminais, uma vez que não enfrentam o problema estrutural. O modo de enfrentamento dos problemas ambientais tende a reproduzir, em escala ainda mais profunda, as desigualdades entre norte e sul e as desigualdades internas dos países.
Normalmente, os meios de comunicação têm tratado o resultado das Conferências do Clima como um fracasso, mas, na verdade, não é isso. Essas convenções têm chegado a acordos que vão se implantando mundialmente, acordos esses que tendem a prevalecer os interesses daqueles que destroem o planeta e ganham dinheiro com isso. Essas pessoas passam a ganhar dinheiro com o discurso de que conservarão o planeta, seja através de documentos diversos, como a comercialização dos créditos de carbono, serviços ambientais. Enfim, todas essas políticas que são vendidas como a salvação dos problemas climáticos.
IHU On-Line – Como enfrentar os efeitos para solucionar os problemas ambientais, climáticos e sociais? O senhor critica a visão de desenvolvimento sustentável, mas como compatibilizar desenvolvimento e sustentabilidade?
Elder Andrade de Paula – Temos de nos perguntar se é possível continuarmos com essa lógica que preside a ideologia do desenvolvimento. Se você analisar a manchete da Folha de S.Paulo do último domingo, verá uma chamada que diz assim: “A Amazônia vira motor do desenvolvimento”, e, logo abaixo, tem uma foto ilustrando os conflitos da juventude em Roma, que está lutando contra as grandes corporações, contra o sistema financeiro, que tem intensificado a crise social e a crise ambiental. Portanto, veja bem, a mesma chamada que anuncia uma região como motor de desenvolvimento mostra, a partir da foto, o resultado desse desenvolvimento.
Nos anos 1990 surgiu esse nome simpático de desenvolvimento sustentável. Mas como os críticos de primeira hora já anunciaram, essa é somente uma forma de tentar dar outra coloração para um processo que não tem solução. Dentro dessa lógica de expansão incessante do processo de acumulação do capital em nível local e internacional, não há como contornar os problemas gerados. Existem inúmeras alternativas para isso, as quais têm sido propostas mundialmente. A Bolívia e o Equador estão propondo uma ruptura com essa ideia de desenvolvimento, ou desenvolvimento sustentável, para se construir outros mundos necessários.
Na Bolívia e no Equador, eles apresentam o bem-viver como uma possibilidade pautada em heranças culturais, em outra visão de relação entre sociedade e natureza, que não tem como fundamento a acumulação incessante de capital e de mercadorias, mas, sim, outro tipo de vida que possa fazer com que todos tenham o suficiente para viver e não destruir o lugar em que vivem. Está mais do que na hora de enfrentarmos esse problema de forma contundente.
O bem-viver não é somente um caminho para a civilização em curso. Não podemos pensar em importar o bem-viver como percepção do mundo andino para o Brasil, por exemplo. Mas podemos pensar que a civilização, tal como se apresenta hoje, não tem saída possível para uma vida melhor para todos. Então, podemos nos inspirar na ideia de que todos podem viver melhor, e que não haja, numa sociedade, um grupo muito pequeno que explora todos os recursos para manter um padrão de vida extremamente elevado, enquanto a maioria não tem nada. As chamadas políticas compensatórias são provisórias, são conjunturais.
IHU On-Line – Como a política ambiental e a política econômica do governo federal têm impactado os povos tradicionais da Amazônia?
Elder Andrade de Paula – Em 2003, defendi uma tese de doutorado cujo título é “Estado em desenvolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza”. Portanto, há oito anos faço uma crítica a esse novo modelo que começava a aparecer como a solução para os problemas da Amazônia. Procurei mostrar a incompatibilidade entre a conservação da natureza e o bem-estar social com a rentabilidade do capital. O que estamos vendo é uma aceleração monumental da insustentabilidade.
Está acontecendo na Amazônia um processo avassalador de destruição que pode ser comparado ao período da ditadura militar da década de 1970. Todos os esforços realizados pelo governo em nível federal ou estadual são para transformar a Amazônia em uma base de expansão desse modelo primário exportador. As repercussões para as populações que vivem em tais territórios são enormes, uma vez que eles estão sendo avassalados de formas diversas por empresas madeireiras e mineradoras. As populações camponesas, os seringueiros, os ribeirinhos, todos os assentados, todos os que vivem da terra e na terra estão sendo afetados por essas grandes obras. Além disso, a população que vive no meio urbano, que representa mais de 70% da população na Amazônia Legal, está concentrada em condições extremamente precárias, porque não existe um projeto de industrialização que possa gerar trabalho e condições dignas de vida para as pessoas.
A criação de unidades de conservação, anunciada como solução para preservar a Amazônia, tem sido um artifício para transferir a capitais privados o direito de uso desses territórios. O exemplo mais emblemático disso é a lei 11.286, de 2006, que instituiu a concessão de florestas públicas para a exploração por parte das madeireiras. Iniciativas como essas promovem a privatização de tudo que existe nessa região.
Hoje, a situação da Amazônia é muito mais dramática do que na década de 1970, quando a questão da terra estava posta como elemento essencial na luta de resistência. Atualmente a luta é contra a mercantilização da natureza e da vida. É bom ter consciência de que isso não está sendo feito sem resistência. Os povos do Pará estão se mobilizando contra Belo Monte e conseguindo apoio nacional e internacional. Na Bolívia, a 8a marcha dos povos das terras baixas contra a estrada que vai cortar as terras indígenas e o Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro Sécure – Tipnis mostram a disposição dos povos indígenas em enfrentar esse projeto. Estamos vivendo um período que vai abrir conflitos de alta intensidade nessa região para se contrapor à expansão avassaladora do processo de destruição capitalista em curso.
IHU On-Line – No Acre, um milhão de hectares é concedido para o manejo florestal madeireiro. Que áreas são essas? Atingem comunidades indígenas?
Elder Andrade de Paula – Grandes empresas transnacionais operam regionalmente com laranjas, muito associadas ao poder local. É possível comparar a situação que acontece no Acre a do Mato Grosso, que foi capturado e dominado pelos interesses do agronegócio. No Acre, o poder estadual foi capturado pelo agronegócio da madeira. O grupo que domina o poder desse estado há 13 anos tem o PT como liderança e está associado à importação da madeira.
Digo com toda a segurança que nem a população camponesa nem os indígenas se beneficiam com a plantação madeireira na região. Ao contrário, elas têm sido extremamente afetadas por este movimento crescente de destruição das matas. Para se ter uma ideia, o projeto que é dito como modelo pelos ambientalistas de mercado no Brasil, difundido internacionalmente como modelo de exploração sustentável de madeira, de manejo comunitário, não atende à comunidade. Todas as famílias que vivem do Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes estão cadastradas no programa Bolsa Família, apesar de praticarem o manejo comunitário de madeira há quase uma década. Segundo depoimento de uma das principais lideranças do projeto, a renda que essas pessoas obtêm anualmente com a venda de madeira é 2,500 reais porque vendem o metro cúbico de madeira a 90 reais para a Laminados Triunfo, que é a grande madeireira que domina este pedaço. Os 90 reais não são líquidos, porque as pessoas têm que pagar o serviço das máquinas.
Enquanto a madeireira compra esta madeira a 90 reais por metro cúbico, na cidade ninguém consegue comprar madeira desta qualidade por menos de 1,400 reais o metro cúbico. Boa parte dela é destinada à exportação com o chamado selo verde. As marcenarias, de pequeno porte, que envolviam o trabalho familiar, encerraram suas atividades, e as que ainda funcionam utilizam o MDF que vem do sul do Brasil. As marcenarias não têm acesso à madeira porque o preço é exorbitante.
IHU On-Line – Além do Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes, conhece como funciona a Fábrica de Preservativos Natex e o Seringal São Bernardo? Qual a finalidade dessas entidades e seus projetos em relação ao meio ambiente?
Elder Andrade de Paula – A Natex é uma fábrica de preservativos que foi financiada pelo BNDES, ou seja, funciona com recursos públicos e tem um contrato de fornecimento dos preservativos para o Ministério da Saúde. O objetivo anunciado dela seria criar uma alternativa para os seringueiros que têm a extração do látex como atividade importante para a composição de sua renda familiar. Todavia, ela compra o látex tão somente de 700 seringueiros. Para se ter uma ideia, somente na reserva extrativista Chico Mendes vivem 1800 famílias. Isso quer dizer que a fábrica de preservativos não atende sequer 50% dos moradores da reserva extrativista Chico Mendes.
Não sabemos efetivamente o montante dos recursos que foram destinados para a implantação da empresa. Temos a desconfiança de que, com o que foi utilizado para a construção e manutenção da fábrica, seria possível atender mais de 50% das famílias existentes em todo o Acre. Mas como não há nenhuma transparência, nada que possa parecer com possibilidade de controle do público sobre o governamental nessas terras, não temos informações seguras.
O seringal São Bernardo é uma área que está sendo explorada pela mesma madeireira, a Laminados Triunfo. A área explorada por eles é ocupada por famílias que vivem lá há décadas, mas que não têm documentos de regulamentação da terra. Por isso elas estão sendo pressionadas a desocuparem a terra para que a exploração madeireira possa acontecer. Os depoimentos das pessoas são extremamente comoventes. Estive lá por mais de duas vezes conversando com os que estão sendo atingidos, e somente agora estão encontrando uma forma de reagir, porque o fato ganhou notabilidade pública nacional. Antes eles não conseguiam reagir porque o movimento sindical é controlado pelo governo. As organizações representativas dos segmentos sociais subalternos, em sua maioria, estão subordinadas ao esquema partidário e clientelista, que foi reconfigurado pela aliança entre o PT a direita tradicional, que representa parte do poder oligárquico.
Movimento sindical
O sindicado dos trabalhadores rurais de Xapuri, que tem como presidente a Dercy Teles, que foi a primeira presidente do sindicato dos trabalhadores rurais do Brasil, também tem enfrentado e feito oposição a tal modelo. Na universidade, professores e estudantes manifestam críticas ao modelo que está em curso.
IHU On-Line – Como avalia a atuação do BNDES no financiamento da construção de novas hidrelétricas na região amazônica?
Elder Andrade de Paula – Os projetos que o BNDES tem financiado, seja na Amazônia brasileira, seja na Amazônia continental, estão repercutindo de forma negativa nesses territórios. A fábrica de tacos, que foi financiada no eixo da BR-317, perto de Xapuri, produzirá enorme impacto, destruindo a reserva extrativista Chico Mendes e tirando madeira de lá. As obras da construção de hidrelétricas em Madre Dios, que fazem parte do acordo energético entre Brasil e Peru, também produzirão impactos enormes, desalojando povos indígenas e camponeses de áreas que vivem lá secularmente.
O caso da Bolívia é bastante emblemático. A 8ª marcha está lutando contra o projeto financiado pelo BNDES de construir a estrada que liga San Ignacio de Moxos até Villa Tunari, em Cochabamba. A empreiteira que vai construir a estrada é a brasileira OAS, e quem mais vai se beneficiar com esse projeto são o agronegócio da pecuária de Beni e o agronegócio da soja, que estão em Santa Cruz. O BNDES tem atuado contra os interesses dos povos que vivem nessa região e a favor da continuidade desse projeto de espoliação não só da Amazônia brasileira, mas também da Amazônia continental.
O que o BNDES faz hoje não é diferente do que o Banco Mundial tem feito, desde a sua criação, nos países colonizados. Então, o banco reproduz, fora do Brasil, um modelo de exploração.
IHU On-Line – Tem acompanhado os protestos na Bolívia por causa da construção da estrada que afetará as comunidades indígenas? Como vê esse debate?
Elder Andrade de Paula – Sim. Estive na Bolívia na última semana de setembro, participando de um seminário e conversei com lideranças indígenas e camponesas da tríplice fronteira.
O governo de Evo Morales tem um forte apoio dos dois povos mais poderosos da Bolívia, Aymará e os Quéchua. Nas terras baixas, vivem 34 dos 36 povos da Bolívia, os quais serão mais afetados pela construção da estrada. O projeto de governo de Evo Morales, no sentido de enfrentar o drama social da Bolívia de extremo empobrecimento da população, passa pela capacidade de o Estado obter recursos para dar continuidade à política governamental, que é muito parecida com a política filantrópica posta em marcha no governo Lula. Para isso ele tem que expandir as ações entre governos para a exploração do território amazônico, onde estão as maiores riquezas naturais do país. Ocorre que nessa região vive a minoria da população, e, portanto, o governo irá contar sempre com o apoio da maioria para “desenvolver” em nome do Estado plurinacional. A ideia é de que o Estado boliviano necessita obter ingressos para fazer as políticas necessárias a fim de “cambiar”, transformar a sociedade.
O ponto essencial é que os povos que estão marchando se opõem a essa expansão avassaladora da exploração predatória sobre seus territórios. Conflitos contra esse processo de expansão acelerada de grupos capitalistas de diversos locais do mundo (Chile, China, Estados Unidos, Brasil) ocorrem em todas as partes dos territórios que compõem a Amazônia Continental. Há aí uma disputa enorme para extrair as riquezas existentes.
O que acontece hoje não se compara com o processo de exploração ocorrido na Amazônia do século XIX para o XX, quando se deu a exploração da borracha para movimentar a principal indústria automobilística emergente naquele período. Agora, o processo de acumulação demanda outras matérias-primas que repercutem na destruição do território, como energia para explorar minerais, produtos oriundos do setor do agronegócio, como soja, biocombustíveis, madeira, exploração petroleira. Quem trabalha com petróleo, mineração e madeira são grandes transnacionais que controlam esses comércios mundialmente.
IHU On-Line – O presidente Evo Morales vive um dilema ao tentar desenvolver o país e garantir os direitos das comunidades indígenas?
Elder Andrade de Paula – Sim, vive muitos dilemas. Entre a efetivação de uma Constituição que garantiu o exercício das autonomias pelas diferentes nações que vivem naquele território sob seus territórios, Evo Morales assumiu o compromisso com a efetivação de um Estado plurinacional – essa foi uma forma de descolonizar o saber e o poder e de fazer com que essas autonomias tivessem formas efetivas de se implementarem. Ao mesmo tempo, ele assumiu o compromisso de reduzir ou eliminar a pobreza do país, garantindo uma redistribuição de renda. Evo Morales tem enfrentado dilemas não só no nível nacional com o poder oligárquico, mas também entre os movimentos sociais que acabam se dividindo de acordo com os interesses de seus representados ou de quem os representa. Outro grande dilema diz respeito à baixa autonomia relativa do Estado plurinacional boliviano no jogo interestatal internacional.
Para enfrentar o poder estadunidense, o governo boliviano teve que fazer alianças regionais com os governos venezuelano e brasileiro. No caso brasileiro, a fatura que o governo tem cobrado é muito alta. O governo brasileiro não abre mão da construção da estrada do Tipnis. Como o Brasil é o Estado mais poderoso entre os envolvidos diretamente, ele acaba interferindo na capacidade interna do Estado boliviano de decidir soberanamente sobre o que é mais adequado para o conjunto da sua população.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.