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Argentina avança em seu casamento de conveniência com a China

Portal que leva ao Bairro Chinês de Buenos Aires, onde se destaca um cartaz promovendo a renovação do sistema ferroviário da Argentina, em parte financiada por Pequim. Foto: Fabiana Frayssinet
Portal que leva ao Bairro Chinês de Buenos Aires, onde se destaca um cartaz promovendo a renovação do sistema ferroviário da Argentina, em parte financiada por Pequim. Foto: Fabiana Frayssinet

 

Buenos Aires, Argentina, 23/2/2015 – O governo da Argentina afiança um casamento de conveniência com a China, para alguns um disparate, para outros uma aliança indispensável para uma nova inserção global, no que supõe uma mudança radical em relação a uma diplomacia que há alguns anos definia como “relações carnais” os vínculos com os Estados Unidos.

A presidente Cristina Fernández qualificou de “aliança estratégica integral” a nova relação com Pequim, depois de assinar nessa capital, no dia 4 deste mês, um pacote de 22 acordos com seu colega Xi Jinping. Os convênios incluem os setores espacial, de mineração, de energia, financeiro, pecuária e cultural, e entre eles se destaca a construção de duas centrais nucleares e duas hidrelétricas consideradas estratégicas para o autoabastecimento energético da Argentina.

Apesar de muito importantes, os novos acordos, e os que já haviam sido subscritos previamente, são insuficientes para definir a dimensão do compromisso bilateral, segundo Jorge Castro, especialista em China e diretor do Instituto de Planejamento Estratégico. “A relação com a China tem para a Argentina elementos fundamentais de inserção no sistema internacional do século 21, junto a outros países do Sul, encabeçados pelo Brasil”, afirmou Castro à IPS. É um vínculo “entre o novo eixo da economia mundial, China-Ásia, e a Argentina como nação e como unidade regional”, afirmou.

Castro recordou que Pequim é atualmente o principal sócio econômico da América do Sul, devido à compra de matérias-primas, o que implicaria uma interdependência, já que “a China coloca a segurança alimentar de sua população nas mãos de países sul-americanos”. No caso argentino, a China é o segundo sócio comercial, depois do Brasil, ocupando o lugar de outros sócios históricos como Estados Unidos e países europeus.

Em 2014, as exportações para a China atingiram US$ 5,006 bilhões e as importações somaram US$ 10,795 bilhões, o que representou um recorde bilateral e significou 11,5% da balança comercial do país, segundo a Câmara Argentina de Comércio. Antes da visita de Fernández à China, já existiam acordos de investimento em setores estratégicos, como o da chinesa Sinpec e da argentina YPF, duas companhias petroleiras estatais, para a exploração de um dos campos da megajazida de hidrocarbonos não convencionais de Vaca Muerta, no sul do país.

Também já havia se concretizado o financiamento chinês, por cerca de US$ 2,5 bilhões, da reconstrução da rede ferroviária da empresa Belgrano Cargas e Logística, que posteriormente transportará produtos agroalimentares argentinos e brasileiros até portos chilenos do Oceano Pacífico. “Os acordos de investimento com Pequim são importantes na medida em que facilitam as condições para continuar gerando, por exemplo, a infraestrutura para o desenvolvimento que a Argentina necessita, em um cenário de restrição externa” (escassez de divisas), resumiu à IPS a economista Fernanda Vallejos.

 

Construção da base espacial da China na província argentina de Neuquén, que rechaça a oposição política de todas as tendências e de todos os grupos sociais. foto: Cortesia de DesarroloyDefensa
Construção da base espacial da China na província argentina de Neuquén, que rechaça a oposição política de todas as tendências e de todos os grupos sociais. foto: Cortesia de DesarroloyDefensa

 

Em julho do ano passado, a Argentina alcançou um acordo com a China para troca de moedas (swap) equivalente a US$ 11 bilhões, destinado a apoiar as debilitadas reservas monetárias do país, e das quais em dezembro recebeu US$ 1 bilhão. A troca “foi um instrumento muito poderoso”, que se soma a medidas do governo e do Banco Central para promover a estabilidade cambiária e ajudar na desaceleração da inflação, explicou Vallejos, integrante de um grupo que assessora o Ministério de Economia e Finanças Públicas.

As vozes contrárias à aliança com Pequim provêm de setores empresariais, como a União Industrial Argentina (UIA) ou a Câmara de Exportações da República Argentina, que alertam para as assimetrias da relação. As exportações para a China são metade das importações e se concentram em produtos primários ou agroindustriais, 75% do total são soja e derivados. Já na importação predominam insumos para máquinas e eletrônicos, computadores, telefones, produtos químicos, motocicletas ou peças para eletrodomésticos, entre outros.

Segundo a UIA, o Convênio Marco de Cooperação em Matéria Econômica e de Investimentos, assinado em julho do ano passado e esperando aprovação definitiva no parlamento, “contém cláusulas de enorme risco para o desenvolvimento argentino”. Em um comunicado a UIA afirma que, “durante a última década, a estratégia da China perseguiu dois objetivos centrais: consolidar suas empresas transnacionais em cadeias globais de valor, e obter matérias-primas e insumos de baixa elaboração para suas crescentes necessidades produtivas e de emprego”.

“Nos acordos de livre comércio nessa época do processo de globalização, o fundamental não é o comércio mas os investimentos”, rebateu Jorge Castro ao questionar o conceito de “assimetria” e apoiar o convênio com a China. Para o especialista é preciso analisar a relação em um contexto maior. Por exemplo, recordando que nos próximos dez anos calcula-se que o investimento direto chinês no exterior chegará a US$ 1,1 trilhão. “A questão é como conseguir ser parte da corrente de investimentos chineses em matéria industrial nos próximos dez a 20 anos”, afirmou.

A UIA concorda em ser parte dessa corrente, mas com autorizações que não prejudiquem os setores de bens e serviços locais, que não têm possibilidade de financiamento chinês. A união industrial e alguns sindicatos temem também que a contratação de mão de obra chinesa, incluída em vários projetos, tome lugar de trabalhadores locais. “Fiquem tranquilos, continuamos defendendo o trabalho argentino e a participação do empresariado”, rebateu Fernández, que convocou esses setores para discutir tecnicamente os acordos.

Alguns na Argentina veem a China do século 21 como a Inglaterra do século 19 ou os Estados Unidos do século 20, em termos de domínio hegemônico econômico e territorial. Com essa percepção, também questionam a construção em andamento de uma base espacial chinesa na província de Neuquén, para realizar, segundo o governo, “tarefas de monitoramento, controle e baixa de dados no contexto do programa chinês de missões para exploração da Lua e do espaço”.

O deputado opositor dessa província, Raúl Dobrusin, explicou à IPS que o acordo, que cede à China 200 hectares por 50 anos e ao qual se opõem grupos de esquerda e organizações sociais, não passou pelo parlamento provincial, que desconhece seu alcance. No momento não há presença militar chinesa nas obras, disse Dobrusin, mas, a seu ver, a base representa “riscos geopolíticos maiores”.

“Se houver confrontação entre potências, passaremos a ser um lugar considerado pelos inimigos da China. Em poucas palavras, nos metemos em um campo no qual a possibilidade de decidir participar dos conflitos já não passa por decisões soberanas, não nos perguntarão”, alertou o deputado.

A aliança “transcende o econômico para se inscrever na busca por um destino de independência, tanto no campo econômico quanto no político, que nos permita alcançar as metas de desenvolvimento econômico e social, rompendo o jugo do neoliberalismo e a lógica império-independência”, rebateu Vallejos.

A seu ver, a China “está muito distante da voracidade das potências do Ocidente. É parte de um novo ordenamento mundial que luta para nascer, no qual o papel dos países emergentes deixa de ser o de colonialismo para assumir o de artífices de seu próprio destino”, assegurou a economista. “Isso não significa que a China não obtenha benefícios da relação com nossas nações, mas é possível construir uma relação onde todas as partes ganhem”, ressaltou Vallejos. Envolverde/IPS