Arturos rezam, dançam e cantam pela libertação

Família quilombola de Minas Gerais reúne mais de duas mil pessoas em tradicional congada de 13 de maio.

[media-credit name=”Pilar Oliva” align=”alignright” width=”400″][/media-credit]Um provérbio angolano diz que “andar sozinho é quase não andar. Cantar sozinho é quase murmurar e dançar sozinho é quase se arrastar”. Essa lição foi aprendida há 123 anos pela grande e unida família dos Arturos, de Contagem (MG). E, respeitando as tradições ancestrais africanas, os 548 parentes que hoje vivem no Quilombo dos Arturos se juntam em maio para a congada da Festa da Libertação. Durante dois dias, rezam, dançam, cantam e caminham em procissão, louvando Nossa Senhora do Rosário e em lembrança da assinatura da Lei Áurea.

O Quilombo dos Arturos é reconhecido por suas festas e pela religiosidade católica com matriz africana, representada pela congada e a dança de Moçambique. Neste ano, a festa aconteceu nos dias 7 e 8, com participação de 14 guardas (grupos) da Grande Belo Horizonte. Nesses dias, desde a madrugada, o cortejo percorreu várias vezes as casas da comunidade – com especial atenção às moradias dos “reis” e “rainhas” e dos patriarcas da família – e as ruas do bairro, até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Titulação

A riqueza cultural da dança e da música dos Arturos mantém a família unida. Mas não só, pois a comunidade está unida para preservar a terra. Apesar da documentação de propriedade da terra datada de 18 de março de 1888 e do certificado de reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, desde 2005 os Arturos aguardam a titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A documentação completa, em nome da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Contagem, foi protocolada em abril, dando início ao processo de levantamento antropológico para certificação como quilombo urbano.

Os líderes da comunidade reivindicam urgência na titulação das terras, compradas no ano da assinatura da Lei Áurea pelo casal Camilo Silvério e Felisbina Rita Cândida, escravos angolanos que trabalharam no garimpo de pedras preciosas da então Vila Santa Quitéria, hoje município de Esmeralda. São 126 mil metros quadrados, registrados no nome de Artur Camilo Silvério, um dos quatro filhos de Camilo e Felisbina e o personagem que deu vida e nome à comunidade.

A documentação comprobatória de propriedade, em nome de Artur e seus descendentes, não impede a pressão imobiliária. Os Arturos já foram procurados por construtoras interessadas em construir um conjunto habitacional no local, oferecendo apartamentos em troca da área de mata e das 86 casas. “Somos uma família e estamos unidos. Mas precisamos ter respaldo legal e a titulação da nossa área pelo Incra, para impedir essa especulação imobiária”, diz João Batista da Luz, da sexta geração de Arturos.

Preservação da terra

Hoje a terra está subdidivida entre filhos e netos de Artur Camilo Silvério e Carmelinda Maria da Silva, o patriarca que mesmo tendo nascido na Lei do Ventre Livre sofreu torturas e maus tratos de fazendeiros. Fugido da violência, foi ele quem ocupou definitivamente a terra, para constituir a família que tem como principais características o respeito às tradições, os laços de parentesco, as ações coletivas, a transmissão oral dos ensinamentos e a fé em Nossa Senhora do Rosário.

Os “antigos” ainda consideram a princesa Isabel como redentora dos escravos. A opinião dos patriarcas é respeitada como fruto de uma vivência transmitida oralmente pelos ancestrais. Mas a nova geração começa a debater a “libertação dos escravos” sob a ótica da autonomia. Um exemplo está no grupo de teatro Filhos de Zambi, constituído por jovens Arturos que propõem celebrações em torno de Zumbi dos Palmares. Nas peças, surgem as temáticas das cotas, diversidade cultural e direito ao trabalho.

O patriarca da comunidade é o “capitão-mor” Mario Braz da Luz, o “tio Mario”, de 78 anos. Ex-agricultor e trabalhador de ronda por 29 anos, ele é respeitado como o “pai de todos” e reconhecido como autoridade máxima da comunidade. Em sua casa de tijolos de adobe, construída pela primeira geração de Arturos, ele recebe a família, abençoa doentes com rezas tradicionais, vistoria a capela e coordena as decisões que envolvem a comunidade.

Tio Mario foi reconhecido como mestre griô pelo Ministério da Cultura em 2011. Recebeu o certificado em Brasília e ainda espera o prêmio, que direcionará para a comunidade. Mas afirma que a honraria pouco importa, pois prefere coordenar a festa, marcada pelas procissões e pela dança, em que reis e rainhas e as simbolizações da corte da princesa Isabel representam a coroação de um reinado congolês.

Cortejos de fé

As guardas seguem em cortejo vestidas de cores e adereços diferentes. Cabe ao congo, em “fardas” branco e rosa, ir na frente para abrir os caminhos. As guardas de Moçambique, vestidas de branco e azul e com as tradicionais gungas nos tornozelos, conduzem os reis e rainhas e guardam e protegem o Reinado, em que se sobressai o rei e a rainha conga, postos que são transmitidos de pais para filhos.

A tradição – que inclui a recepção e acolhida aos visitantes, o almoço coletivo feito com recursos da própria comunidade e a proibição de comercialização durante os festejos – está registrada em dois CDs com 52 músicas rituais e depoimentos dos antigos (alguns deles já mortos) e em um livro da história do local. O material foi totalmente organizado pelos Arturos, que se preocupam agora em garantir a transmissão dos conhecimentos para as novas gerações.

“Há muita pressão de fora, a violência que ameaça chegar e o processo de desenvolvimento dos jovens. Antes éramos uma área rural, hoje estamos a dois quilômetros do centro de uma cidade que é polo industrial. Temos de preservar a cultura e a devoção aqui, trabalhar com as crianças e os jovens para que tenham orgulho de ser Arturos”, diz João Batista.

* Publicado originalmente no Brasil de Fato.