A menina me havia advertido: para entender a sua escola eu teria de me esquecer de tudo o que eu sabia sobre as outras escolas… Lembrei-me da pedagogia de Ricardo Reis: “…tendo as crianças por nossas mestras…”. E ali estava eu, um velho, aprendendo de uma criança!
Quis aprender um pouco mais. Perguntei: “Vocês não têm problemas de disciplina? Não há, entre vocês, os valentões que há em todas as escolas, que agridem, ofendem, ameaçam e amedrontam?”
“Ah”, ela me respondeu. “Temos sim. Mas para esses casos temos o tribunal…”
“Tribunal?”, perguntei curioso. Mais uma coisa que eu nunca vira em escolas!
Ela então me explicou: “As leis de nossa escola foram estabelecidas por nós mesmos, alunos. Temos então de zelar para que essas leis sejam cumpridas. A responsabilidade com o cumprimento das leis é nossa e não dos professores e do diretor. Somos nós, e não eles, que temos de tomar as providências para que a vida da escola não seja perturbada. Quando um aluno se torna um problema ele é levado a um tribunal –tribunal mesmo, com juiz, advogado de defesa, advogado de acusação– e é julgado. E a comunidade de alunos toma a decisão cabível”.
Voltei à Escola da Ponte um ano depois e fui informado de que o tribunal deixara de existir. A razão? Um aluno terrível fora levado a julgamento. O juiz –não me lembro se menina ou menino– nomeou o advogado de acusação, e o réu nomeou seu próprio advogado. No dia marcado, reunidos os alunos, o advogado de acusação proferiu a sua peça, tudo de mau que aquele menino havia feito. O diretor, que apenas assistia à sessão, relatou-me sua impressão: “O réu estava perdido. A peça acusatória era arrasadora…”
Chegou a vez do advogado da defesa que ficou mudo e não conseguiu falar. A presidência do tribunal nomeou então um advogado ad hoc, uma menina que teve de improvisar. E essa foi sua linha de argumentação:
“Vocês são todos religiosos, vão ao catecismo e aprendem as coisas da igreja. Vocês aprenderam que quando alguém está em dificuldades é preciso ajudá-lo. Todos vocês sabiam que o nosso colega estava em dificuldades. Precisava ser ajudado. Eu gostaria de saber o que foi que vocês, que aqui estão assentados como júri para proferir a sentença, fizeram para ajudar nosso colega…” Seguiu-se um silêncio profundo. Ninguém disse nada.
A menina continuou: “Então vocês, que nada fizeram para ajudar esse colega, agora comparecem a esse julgamento com pedras na mão, prontos a apedrejá-lo?”
Com essa pergunta, o tribunal se dissolveu porque perceberam que todos, inclusive o juiz e o advogado de acusação, eram culpados. Como é que estão resolvendo agora o problema da indisciplina e da violência?
Criaram um novo sistema, inspirado numa história da escritora Sophia Mello de Breyner Andressen que conta de uma fada –acho que o seu nome era Oriana– que vivia para ajudar crianças em dificuldades. Como funciona? É simples. Quando um aluno começa a apresentar comportamento agressivo forma-se um pequeno grupo de “fadas Orianas” para impedir que a agressão e a violência aconteçam. Pelo que me foi relatado, as fadas Orianas têm tido resultados muito bons. Quem sabe coisa parecida poderia funcionar com os bullies que infernizam a vida dos mais fracos nas escolas…
Veja o início da história aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
* Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.