No mês de agosto, acompanhamos pela mídia as desventuras em série de um grupo de meninas acusadas de furtos e agressões na Vila Mariana, bairro de classe média da zona sul paulistana. No primeiro dia do mês, os jornais anunciaram que um “bando” de cerca de 20 crianças, a maioria meninas, estava “aterrorizando” a região. O Conselho de Segurança (Conseg) do bairro discutia a questão e lembrava que o grupo já havia sido detido em flagrante mais de 15 vezes. O Conselho Tutelar também já conhecia o caso e informava que a maioria das crianças seria de Cidade Tiradentes e de São Mateus, bairros pobres da zona leste. Mais ainda: o grupo seria composto por cerca de 30 crianças e atuaria havia três anos na Vila Mariana.
Onze dias depois, sete meninas deste grupo foram detidas novamente. Desta vez, a polícia informou que três eram menores de 12 anos e, por isso, foram encaminhadas para o Conselho Tutelar, como orienta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para serem reencaminhadas às próprias famílias ou a abrigos. As outras permaneceriam na delegacia aguardando a vinda de familiares ou poderiam ser direcionadas à Fundação Casa. A repercussão do caso na mídia teve resultado: as mães foram à delegacia reencontrar suas filhas. Estas mães têm de 26 a 33 anos e de três a sete filhos cada uma.
Chegando à delegacia, as mães foram presas e indiciadas por abandono de incapaz, por ordem do delegado. As sete meninas, agora sem possibilidade de voltar para as casas, foram para abrigos. Mas, no dia seguinte, a Justiça as soltou, determinando que não deixassem a cidade e que comparecessem ao Conselho Tutelar de Cidade Tiradentes.
Mais uma semana e o grupo volta às manchetes. Desta vez porque a irmã mais velha de uma delas, de 17 anos, foi em busca da mais nova e a encontrou, de madrugada, em companhia de duas amigas. Todas haviam saído dos abrigos para onde foram encaminhadas (o termo “fugido” empregado pelos jornais não é adequado, já que os abrigos não são prisões). As meninas brigaram, alguém chamou a polícia, e lá foram as crianças para a delegacia novamente. A irmã relatou que a mais nova estava fora de casa havia dois meses. A Vara da Infância e Juventude decidiu que as três meninas reencontradas terão que cumprir medidas socioeducativas, como serviços à comunidade, em liberdade assistida, acompanhadas por ONGs e Ministério Público Estadual, e terão que ir à escola, conforme determina a lei.
Ainda não sabemos qual será o próximo capítulo desta série de desventuras, mas está claro que estamos longe de uma solução adequada, que promova a proteção, o cuidado, a saúde e a educação destas crianças. As várias instâncias responsáveis por isso não estão ausentes. Elas aparecem e atuam, mas, com a lógica fragmentada dos encaminhamentos, vem falhando sistematicamente: a família, a escola, os bairros (aquele onde as crianças nasceram e o outro, onde circulam), a polícia, o Conseg, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância e Juventude, a Promotoria, a Justiça, os abrigos, a Fundação Casa. Diante disso, podemos nos indignar, mas nos sentimos impotentes.
No entanto, há algo que podemos fazer. A legislação prevê a nossa participação na constituição e no controle das instituições públicas responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do adolescente. Se não participamos, elas acabam sendo tomadas por interesses privados e seus ocupantes não se sentem obrigados a nos prestar contas.
A mais importante destas instituições em casos como este é o Conselho Tutelar, criado com o ECA, há 21 anos. Órgão municipal autônomo, não subordinado ao Estado, é responsável por zelar pelos direitos da criança e do adolescente, sendo formado por membros eleitos pela comunidade para mandato de três anos. Em São Paulo, temos 44 conselhos tutelares, cada qual constituído por cinco membros. O Conselho Tutelar deve ser acionado sempre que se perceba abuso ou situações de risco contra a criança ou o adolescente. Cabe a ele aplicar medidas que zelem pela proteção dos direitos da criança e do adolescente. Para tanto, é evidente a necessidade de o Conselho trabalhar em parceria com a rede responsável pela garantia destes direitos e sempre em diálogo com as crianças e os adolescentes.
A próxima eleição dos conselheiros da capital paulista acontecerá por meio de voto secreto e direto nas respectivas zonas eleitorais nos dias 14, 15 e 16 de outubro. Informe-se no seu bairro quem são os candidatos apoiados pelas ONGs, escolas, postos de saúde, Vara da Infância e outras organizações da rede sociopedagógica, e ajude a eleger alguém com o perfil adequado e com condições garantidas por esta rede para finalmente encerrar as desventuras em série das nossas crianças.
Moradores de outras cidades, informem-se quando será a próxima eleição do Conselho Tutelar de sua cidade.
* Helena Singer é socióloga com pós-doutorado em Educação e diretora pedagógica da Associação Cidade Escola Aprendiz.
** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.