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Bairro do Ipiranga em 1924, à esquerda, e, à direita, em 2010
São Paulo fica bem na cabeceira da bacia do Tietê. Cabeceira é a beirada da bacia, onde a chuva cai e escorre para dentro. A parede externa da bacia é a Serra do Mar, que bloqueia as nuvens úmidas vindas do Atlântico, e por isso é um dos pontos mais úmidos do Brasil. O lugar onde está São Paulo é onde essas nuvens descarregam toda a água tirada do mar. Por causa disso, a região era cortada por centenas de rios, riachos, córregos, que apanhavam essa aguaceira e a empurravam para o interior, rumo ao rio Paraná. Se você mora em São Paulo, não importa qual bairro, é certeza que um riacho corria pertinho da sua casa. Mas provavelmente não corre mais. Os riachos de São Paulo hoje estão quase todos dentro de canos, debaixo do asfalto.

 

A cidade começou sua história longe da água, na colina entre o rio Tamanduateí e o Anhangabaú – ninguém queria ficar perto d’água, dos mosquitos e dos atoleiros. Quando começou a crescer, a cidade foi pelos altos dos morros, longe dos rios. Avançou morro acima até onde hoje é a Avenida Paulista e se espalhou pela crista da montanha, onde hoje ficam a Avenida Doutor Arnaldo, a Heitor Penteado, a Rua Vergueiro.

Dê uma olhada no mapa aqui. Ele é de 1924, quando a cidade não tinha nem 1 milhão de habitantes (quatro anos antes, o censo de 1920 registrou 579.033 paulistanos). Note como a cidade é toda cortada por uma infinidade de linhas azuis. Eram 1.500 quilômetros de cursos d’água. Note também como as ruas da cidade geralmente não atravessavam os riachos. Corriam ao lado deles, mais para o alto dos morros, no seco. Se você mora em São Paulo, é quase certo que um rio já correu perto da sua casa – encontre o seu.

Mas isso foi bem no começo do crescimento explosivo da população, um dos maiores da história da humanidade. A população paulistana quase dobrava a cada década. Com isso, os rios foram sendo cobertos de asfalto. Por lei, já era proibido construir a menos de 10 metros de um riacho, mas essa lei nunca foi respeitada. Prova disso é que até Câmara Municipal da cidade fica bem em cima de um rio, o Bexiga. Esse processo se acelerou durante a ditadura militar, que radicalizou a opção pelo automóvel e construiu avenidas em quase todos os fundos de vale. Nas áreas de várzeas, os rios antes curvos ficaram retos e o asfalto chegou até a beirada deles. Carros precisam fluir rápido – por isso o melhor é ter asfalto bem lisinho. Já a água é melhor que corra devagar – o asfalto liso é um convite às enchentes (o ideal seria adotar superfícies rugosas).

Quando chove forte – mais de 100 mm num dia – água desce velozmente as regiões íngremes das cabeceiras, que geralmente são bairros pobres da periferia. No caminho vai arrastando casas, esmagando gente nos escombros. Quando chega nas regiões mais baixas, as antigas várzeas, levam um monte de terra, que vai assoreando tudo. É nesses lugares que a água se acumula, causando enchentes.

A rigor, portanto, não há enchentes em São Paulo – nós é que construímos a cidade em cima dos rios. E a situação vai piorar. Com as mudanças climáticas, a tendência é que chuvas fortes fiquem cada vez mais comuns – em São Paulo espera-se invernos mais secos (e poluídos) e verões mais molhados (e cheios de enchentes). São Paulo vai ter que descobrir maneiras de absorver essa água. Até hoje, apostou em construir “piscinões”, que são imensas catedrais subterrâneas para acumular água (e lixo, e ratos).

Atualmente, há uma tendência de tentar buscar soluções mais “naturais” para escoar água. A prefeitura de São Paulo tem apostado em construir “parques lineares” – que são áreas verdes preservadas ao redor do rio. Além da vantagem óbvia – novas áreas de lazer – a terra das margens absorve parte da água e o rio aberto diminui a velocidade da enxurrada. Isso também diminui a temperatura do ar logo acima, reduzindo as chamadas “ilhas de calor”, que são bolhas de ar aquecido pelo asfalto, que se chocam com o ar frio e úmido vindo do oceano e provocam grandes tempestades. “Estamos focando primeiro em fazer parques lineares nas cabeceiras urbanas – Aricanduva, Cantareira –, que é de onde toda a água vem”, diz a arquiteta Alejandra Maria Devecchi, diretora de Planejamento Ambiental da Prefeitura. “E queremos garantir que os rios que restaram, em outras áreas da cidade, não sejam cobertos”.

Há quem proponha que a solução da “renaturalização” seja adotada na cidade inteira. O engenheiro Sadalla Domingo, pesquisador da USP e funcionário da agência reguladora de saneamento e esgotos do Estado, tem um projeto para renaturalizar o rio Anhangabaú, em vez de construir um novo piscinão lá. “É muito mais barato e mais eficaz, além de poupar a cidade de ter que gastar para sempre limpando o piscinão”.

Sadalla acredita que a cidade está cheia de oportunidades desse tipo. Ele nos levou para passear pelo bairro da Pompéia e mostrou vários pontos onde pracinhas podem virar laguinhos e becos abandonados podem se tornar riachos margeados por ciclovias. “Acho que todos os riachos da cidade podem ser pelo menos parcialmente abertos”, diz. Não vai ser de uma hora para a outra. “Não é fácil concretizar esses projetos”, diz Alejandra, da prefeitura. “A Secretaria de Obras nos diz ‘não sabemos fazer assim’. É um jeito novo de pensar”.

Mas é o futuro.

*Publicado originalmente no !sso Não é Normal, onde é possível conferir infográficos com “antes” e “depois” do Viaduto Jacareí e também navegar pelo mapa da cidade de São Paulo da década de 20.