Nas sociedades indígenas, a passagem para a vida adulta é um grande evento. Muitas vezes os rituais são marcados por testes que envolvem dor e paciência, como acontece nas tribos sateré-mawé, que vivem entre o Amazonas e o Pará. Ali, antes de se tornarem homens, os indiozinhos são obrigados a colocar a mão numa luva tomada por formigas tucandeiras. Se resistir 15 minutos, será homem.
Nas aldeias de concreto e asfalto, o batismo para a maioridade coincide com o momento em que deixamos de ser bípedes e nos tornamos quadrúpedes, numa espécie de salto na linha evolutiva. O ritual acontece entre os 17 e 18 anos, quando os anciãos nos levam para os arrebaldes da cidade e emprestam as chaves dos seus carros. A instrução é mínima: engata aqui, coloca o pé ali (quando já alcançamos os pedais), olha sempre para o retrovisor. Numa conversão mágica entre líquidos arrancados do seio da terra (ou da camada de pré-sal) e a atmosfera de gás carbônico, passamos finalmente a andar com as próprias rodas.
A sensação de liberdade é concluída meses depois, quando pagamos para que alguém nos ensine educação no trânsito. Para alguns, é como tirar porte de arma, embora alguns prefiram retirar o documento no mercado clandestino – porque uma das características do bom quadrúpede é a pressa. Seja como for, a ideia de liberdade tem lá sua relação com as luvas das tucandeiras. A diferença é que as picadas levam mais de 15 minutos: “Se passar na faculdade, compro um desses pra você”. Ou: “Empresto o meu desde que você passe de ano”. Ou: “Compro, empresto, financio pra você, desde que você desfile na rua do vizinho”.
Quando nos tornamos quadrúpedes, ganhamos acesso a eventos e lugares que nos pareciam distantes até os 18 anos, como motéis, clubes e baladas. Já não precisamos combinar horários de saída ou chegada. Nem esperar a reabertura do metrô às quatro e meia da manhã. A liberdade de ir e vir é conquistada, dessa forma, por um novo contrato social, selado a partir da benevolência (e patrocínio) dos pais. Aos 18 anos, aprendemos a ser livres antes mesmo de saber lavar as próprias meias.
Quadrúpedes de carteirinha, passamos finalmente a atuar no papel que esperam de nós. Num tempo de diálogos truncados, em que a polifonia de vozes na multidão anula os traços da personalidade que grita, lotamos de adesivos e rodas rebaixadas os automóveis que falarão por nós. Já não protestamos; buzinamos. Não corremos, aceleramos. Não agredimos, damos cavalos de pau. Cada um a seu jeito, para se fazer notar na multidão que se espreme em espaços cada vez mais reduzidos nas mesmas ruas, as mesmas zebras que protegem os bípedes e suas limitadas ideias sobre liberdade.
Para ser quadrúpede, vale a pena deixar de comer, beber, viajar (ironia) para financiar o carro zero. Há, do lado de fora, uma indústria automobilística que entope, com benefícios governamentais, nossas ruas e povoam nossos fetiches: até 2014, haverá um carro para cada 4 habitantes no Brasil, embora, no mesmo País, apenas uma a cada duas pessoas tenha acesso a esgoto. As ruas não se multiplicam com a mesma velocidade das esteiras rolantes, mas a ideia de transporte coletivo é quase um retorno à idade média: por que colocar 60 bípedes num mesmo ônibus se eles podem se multiplicar, no conforto do ar condicionado, em 60 quadrúpedes solitários?
Na passagem pela maioridade, o ensinamento nada tem a ver com espaço, e sim com conquista. As patas são quatro, mas o bem é individual – à imagem e semelhança de seus donos. Tanto que, em alguns casos, já não se sabe quem é quem: ao deixar as quatro rodas, há quem siga andando de quatro, como o caso do dono do Camaro que atropelou duas mulheres e bateu em pelo menos dois carros na volta da balada, num saldo de quatro feridos e um morto.
Veloz e furioso, só parou no último acidente, quando voou direto para a delegacia e foi socorrido pelo papai, que bancou os 245 mil reais de fiança. Quadrúpede que é quadrúpede não fica mais de três dias na prisão.
* Matheus Pichonelli é Formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos ‘Diáspora’.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.