Neste texto, apresento outro exemplo de mudança estrutural, encadeada.

Nas gramáticas tradicionais, está dito que “assistir” é transitivo indireto quando significa “ser espectador” (assistir ao jogo, ao filme, à novela) e transitivo direto quando significa “cuidar”, “tratar” (o médico assiste o paciente, a mãe assiste o filho gripado).

(Os outros empregos de assistir – assistir-lhe o direito e assistir na rua TAL não entram em questão aqui. A rigor, desapareceram).

Mas o que se ouve? Assistir o jogo, o filme. Esta forma tornaria o uso de “assistir” ambíguo, dizem. Significaria “tratar do filme”, “cuidar do filme”…

Mas isso não é verdade, por duas razões: ninguém é suficientemente maluco para cuidar/tratar de novelas. E ninguém mais assiste doentes ou pacientes: hoje, os médicos cuidam, tratam, atendem (e cobram!). A preposição que seguia “assistir” (ao, à) caiu.

A língua poderia contentar-se com este estado do processo de mudança. A ambiguidade de “assistir” se resolveria pelo contexto ou pelo tema: assim como ninguém compra mangas de vestidos na frutaria, nem pega ônibus no ponto do teatro, assistir um doente, todos entenderiam que assistir o doente significaria “tratar”, “cuidar” dele, e assistir o jogo, “ser espectador”, “torcedor”. O assunto eliminaria a ambiguidade.

Mas a língua foi além desse ponto. A preposição caiu e o sentido de “assistir (ao)” foi preservado: “ser expectador”. A mudança foi menos “traumática” porque o outro emprego de “assistir” desapreceu. Ou quase.

Línguas mudam mais ou menos organizadamente, e aos poucos. O que não significa que não se empreguem mais as construções antigas. Mas por que ser contra as novas?

Defender assistir ao jogo ou havia uma pedra no meio do caminho como formas exclusivas é como defender a obrigatoriedade da gravata borboleta.

PS – Em textos mais solenes, os empregos antigos voltam. Um exemplo: o texto a seguir foi publicado em www.terra.com.br no dia 12/2/2012. “A equipe médica que optou por internação (…). O boletim afirma que o estado de saúde do ex-presidente (…). A equipe médica que assiste Lula é coordenada por…”

* Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas.

** Publicado originalmente no site Carta Capital.