Até o mercado financeiro dava de barato, embora tenha ensaiado o costumeiro “terrorismo de véspera”. Na quarta-feira 19, o Comitê de Política Monetária (Copom) deu continuidade à redução dos juros e cortou a taxa básica em meio ponto porcentual, pela segunda vez consecutiva. A Selic caiu para 11,5% ao ano. Desta vez, não perdeu dinheiro nenhum investidor minimamente atento às mensagens do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, preocupado com os efeitos do agravamento da crise nos países desenvolvidos sobre a economia brasileira. Mas ainda é cedo para saber se a instituição conseguirá sair da linha de fogo em que foi colocada ao contrariar os consensos do mercado.
Desde o início de outubro, o BC viu-se obrigado a divulgar dois esclarecimentos sobre notícias que colocavam em dúvida sua autonomia operacional. Na sexta-feira 7, o banco negou informações atribuídas ao diretor Aldo Mendes, em texto do jornal Valor Econômico, de que o banco seria contrário à aplicação, pelo Ministério da Fazenda, de IOF sobre operações cambiais, e que a medida teria caráter político. Na terça-feira 18, em meio à reunião do Copom, a instituição respondeu a um comunicado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que admitiu investigar operações atípicas no mercado de juros futuros na semana de início dos cortes na taxa Selic.
O xerife do mercado teria considerado suspeito o fato de investidores ganharem dinheiro ao apostar na queda do juro, enquanto bancos, fundos e corretoras foram pegos no contrapé. Na nota, o BC lembrou que as decisões do Comitê são tomadas em “reunião reservada” e tornadas públicas na internet logo após a votação. “Assim, não é possível o conhecimento prévio da decisão”, diz o comunicado.
Em ambos os casos, o assunto em pauta era a chamada independência do BC, princípio invocado pelo mercado ao menor sinal de que a instituição está mais sintonizada com os objetivos econômicos do governo do que com as planilhas das mesas de corretagem. Alguns analistas acusam o guardião da moeda de ter abandonado o regime de metas de inflação, um dos propalados pilares da estabilidade econômica, ao lado da responsabilidade fiscal e do câmbio flutuante.
Passa ao largo dessa análise o fato de o BC brasileiro ter sido o que mais elevou juros em 2011, além de ter lançado mão de outros instrumentos de política monetária, como as medidas macroprudenciais, para impor restrições ao avanço do crédito. As críticas, tampouco, levam em consideração a escalada global da inflação desde a segunda metade de 2010 – um processo, ao que tudo indica, agora em franca reversão por causa da desaceleração das maiores economias.
Em meio ao bombardeio, o BC recebeu, na terça-feira 18, um abraço simbólico da sociedade. Diante da sede paulista da instituição, em plena Avenida Paulista, foi lançado o Movimento por um Brasil com Juros Baixos, com a bênção de entidades como a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Força Sindical, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) e a Confederação Nacional dos Metalúrgicos. A carta manifesto do movimento afirma que “o Brasil é um caso único na história econômica de prática de taxa de juros reais de dois dígitos por 16 anos seguidos, de 1991 a 2006”. “Por conta disso, quando a economia mundial crescia 4,5% e os emergentes entre 7% e 8% ao ano, nosso crescimento ficava na média de 3%.” O documento pede o fim do “comportamento rentista e improdutivo” e a redução dos juros brasileiros a “taxas mais próximas do padrão internacional”.
A cerimônia de lançamento foi realizada a poucos metros do prédio do BC, no auditório do Hotel Renaissance, lotado por um público heterogêneo, formado por operários, empresários e acadêmicos. Entre os que discursaram estava o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, a alertar para o risco de crescimento negativo do PIB em 2012, caso a política monetária não seja afrouxada. “Tecnicamente, não há justificativa ou equação que dê consistência à taxa de juros brasileira.”
O professor da PUC-SP, Antonio Correa de Lacerda, acrescentou que os fundamentos da economia brasileira estão entre os melhores dos países do G-20. “Os 7% de inflação acumulada em 12 meses parecem ser muito, mas há vários países com taxa igual ou superior.” O economista citou a China com 6,5%, a Índia com quase 8%, a Argentina com 10%, e a Venezuela, com 24%. “Vamos ter pela frente o bônus da desinflação global e o ônus da queda da atividade. O grande desafio é tornar o BC independente não apenas do governo, mas em relação ao mercado.”
Coube ao diretor da Escola de Economia da FGV-SP, Yoshiaki Nakano, culpar os altos juros pela taxa de câmbio excessivamente apreciada, “uma das maiores tragédias dos últimos tempos”, e fazer referência à “quebra de protocolo” cometida pelo Copom na reunião de 31 de agosto. “A decisão surpreendeu o mercado, mas não quem acompanha a economia aqui e lá fora. Havia todas as razões para o BC reduzir, e não aumentar, os juros.”
O movimento também revelou uma afinação rara de discursos entre trabalhadores e empresários. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, falou sobre a ameaça de desindustrialização, e citou a luta da entidade para evitar o fechamento da fabricante de autopeças Magnetti Marelli, cuja carteira de encomendas se esgota no fim do ano, o que coloca em risco 500 empregos. Em julho, o sindicato reuniu 30 mil trabalhadores em uma manifestação na Via Anchieta pelo fortalecimento da indústria nacional. De seu lado, o presidente da Abimaq, Luiz Aubert Neto, citou a queda do Brasil da 5ª para a 14ª posição entre os maiores fabricantes mundiais de máquinas, desde a década de 1980. “Precisamos aprender com vocês a fazer movimentos de rua”, disse à plateia de ativistas do movimento sindical.
Também signatário do Movimento por um Brasil com Juros Baixos, o professor da Unicamp Eduardo Fagnani destaca os efeitos “demolidores” das altas taxas sobre as finanças públicas. “Entre 1994 e 2002, a dívida líquida interna do setor público subiu seis vezes, de R$ 109 bilhões para R$ 660 bilhões, e dobrou em relação ao PIB, até 60%. Entre 2003 e 2010, cresceu duas vezes e meia, de R$ 742 bilhões para R$ 1,8 trilhão, mas caiu em proporção do PIB, para 44%, por causa do crescimento econômico.”
De acordo com Fagnani, é o efeito cambial, entretanto, que tornou inviável a manutenção dos juros nos níveis atuais. “O mundo desenvolvido está praticando taxas negativas. A situação é gravíssima, porque permite captar lá fora e investir aqui com um ganho injustificável.”
Uma das razões do BC para a nova queda dos juros foram os sinais, cada vez mais inequívocos, de queda da atividade econômica. O IBC-BR, índice de crescimento utilizado pela instituição, caiu 0,53% em agosto. O resultado aponta um crescimento, no ano, de 3,43% do PIB. No acumulado em 12 meses, a subida é de 4,07%, ou seja, há um processo de desaceleração em curso. O governo ainda trabalha com a expectativa oficial de 4,5% de alta do PIB em 2011, mas o Ministério da Fazenda pretende rever o porcentual para um valor entre 3,5% e 4%.
Alguns indicadores continuam a mostrar aquecimento. As exportações bateram, em meados de outubro, a marca histórica de US$ 200 bilhões e caminham para atingir a meta do governo de US$ 257 bilhões no ano, com alta de 27% sobre 2010. A arrecadação de impostos cresce a uma taxa de 11%, como reflexo de um crescimento muito mais focado nas vendas internas, menos beneficiado por isenções fiscais. Mas uma análise mais aproximada dos resultados revela queda de ritmo em quase todos os setores.
Segundo Tombini, a perda de fôlego da economia deverá se refletir na queda do índice de inflação acumulada a partir de outubro. O IPCA-15, prévia do índice oficial, caiu de 0,53% para 0,42% entre setembro e outubro. Se a estratégia do BC se revelar correta, o Brasil não só poderá evitar o mergulho da atividade econômica, como terá aumentado a chance de sair fortalecido, em relação ao resto do mundo, da crise que se avizinha.
Taxação adiada
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o aumento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de 30 pontos porcentuais sobre automóveis importados de fora do Mercosul e do México. O governo esperava que a medida, adotada como forma de proteger o mercado interno da investida de montadoras que trazem veículos do exterior e incentivar a abertura de fábricas no país, pudesse ser aplicada a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, em 16 de setembro.
O STF acatou uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo Partido Democratas (DEM). O relator da ação, Marco Aurélio Mello, alegou que os três meses de prazo são “uma garantia ao contribuinte contra o poder
de tributar do ente público”.
A medida eleva os preços de modelos fabricados no exterior perto de 28%, e deverá vigorar até 2012. O governo tem se mostrado aberto a discutir com as montadoras mudanças nas regras, como o porcentual mínimo de 65% de conteúdo nacional para um veículo ser considerado fabricado no Brasil.
* André Siqueira é subeditor de Economia de CartaCapital – [email protected].
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.