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Ativismo antirracista se oxigena em bairros cubanos

Mulheres do projeto La Muñeca Negra, que elabora figuras em papel machê inspiradas em deusas afrocubanas. Foto: Cortesia Ernesto Pérez Zambrano
Mulheres do projeto La Muñeca Negra, que elabora figuras em papel machê inspiradas em deusas afrocubanas. Foto: Cortesia Ernesto Pérez Zambrano

 

Havana, Cuba, 18/11/2013 – Irma Castañeda trança desde menina o cabelo enrolado e cuida dele com receitas naturais herdadas de sua mãe, sem se importar com o “feio” ou o “ruim” que ouve sobre o cabelo das mulheres negras. Com suavidade e mãos hábeis, ela aponta para algo muito mais duro do que esses adjetivos: o silêncio sobre o conflito racial, durante décadas tema tabu pelo discurso oficial segundo o qual o racismo foi erradicado pela Revolução Cubana em 1959.

No bairro Balcón Arimao, do município La Lisa, oeste de Havana, Castañeda e outras nove mulheres começam por melhorar a autoestima e ensinam técnicas de cabeleireiro e receitas caseiras de cosméticos para a pele negra, que não existem nas lojas. “Mesmo um cabelo alisado, com penteado afro ou dreadlocks (rastas), pode ser bonito em uma mulher negra, que tem o direito de contar com os meios para cuidar de sua imagem”, disse essa professora de profissão e promotora do projeto Rizos.

“Queremos romper o estereótipo de que as negras são menos bonitas, sem ter que nos parecer com modelos brancas”, acrescentou Castañeda à IPS. As máscaras e as tesouras são, para essas cabeleireiras, porta de entrada para a consciência dos problemas da população afrodescendente, que constitui 35,9% dos quase 11,2 milhões de habitantes de Cuba. A Rizos é uma das iniciativas da Rede Barrial Afrodescendente (RBA), que está reanimando o ativismo antirracista em Havana.

Há um ano, ativistas de diferentes comunidades urbanas fundaram a RBA, para levar aos bairros as pesquisas e os debates sobre a questão racial. Todos os meses, em uma casa comunitária de La Lisa, são dadas conferências para capacitar 35 líderes locais. Cada uma dessas pessoas, com diferentes ocupações e níveis de educação, assume a responsabilidade de levar o que aprendeu à sua família, ao seu bairro e ao lugar de trabalho.

Marlene Bayeux, ex-veterinária de 63 anos, sabe o que é ser subestimada. “Para ser valorizada como profissional, tive que me impor a um chefe racista, mas, se tivesse contado com os argumentos que aprendi com os painéis da Rede, teria poupado momentos amargos”, contou à IPS. Bayeux sente que contribui para a causa no grupo La Muñeca Negra (A Boneca Negra): artesãs que criam figuras de deidades afrocubanas em papel machê.

Outro grupo faz bonecas negras de retalhos de tecidos, mas vestidas como aeromoças, médicas, enfermeiras e militares, contrariando a imagem de religiosa ou escrava, típica desses brinquedos. Embora pequenas, essas ações definem rumos transcendentes, disse à IPS a historiadora Daisy Rubiera, do capítulo cubano da Articulação Regional Afrodescendente da América Latina e do Caribe, criado em setembro do ano passado.

Rubiera, assessora da RBA, considera insuficiente o trabalho do setor intelectual, que há anos disserta, investiga e inclusive lucra com o tema, mas não consegue vincular-se de maneira orgânica com a população. “As causas históricas da discriminação racial não aparecem nos textos oficiais, por isso passam inadvertidas para a maioria”, apontou.

Marita López, coordenadora da RBA e com ampla experiência de trabalho social em bairros pobres, disse à IPS que é preciso debater com as pessoas mais afetadas, que estão nas ruas e não em livrarias, teatros, nem fóruns científicos. “O ativismo acadêmico iniciou o caminho, mas falta a esses intelectuais irem aos nossos bairros transmitir seus conhecimentos em uma linguagem acessível”, destacou.

Em Cuba, a discriminação racial se manifesta, sobretudo, em preconceitos e atitudes pessoais, sociais e culturais. O chamam de “racismo humilhante” ou “de mas”, porque não é bem visto no espaço público e é quase sempre praticado de forma sorrateira. “Às vezes, as pessoas negras não percebem que são discriminadas porque socialmente o problema é considerado natural”, disse a professora aposentada Hildelisa Leal.

A segregação também se manifesta na situação social: negros e mestiços são maioria entre os pobres e minoria nos cargos de poder e em setores econômicos emergentes, como turismo e trabalho por conta própria, observou a pesquisadora María del Carmen Zabala. Segundo suas pesquisas, menos de 20% da população cubana que emigra em busca de um futuro melhor é negra ou mestiça. E, por isso, a maior parte das remessas de dinheiro que esses emigrantes enviam ao país vai para famílias brancas.

Segundo o censo de 2002, o desemprego afetava 2,9% da força de trabalho branca e 6,3% da negra e mestiça. Quanto à graduação em estudos de terceiro grau, a diferença a favor dos que tinham pele clara era de 4,4 pontos percentuais. Até agora esses dados não foram atualizados com o censo de 2012.

O presidente Raúl Castro se referiu a uma ampliação da presença afrodescendente em cargos políticos. Na Assembleia Nacional legislativa eleita este ano, 37% das cadeiras estão ocupadas por pessoas negras e mestiças, proporção semelhante à da população. Em janeiro de 2012, o governante Partido Comunista declarou sua intenção de “enfrentar os preconceitos e as condutas discriminatórias pela cor da pele, que são contrários à Constituição e às leis e atentam contra a unidade nacional”.

Porém, ativistas pedem ações mais contundentes para o segundo país com maior proporção de negros e mestiços da América Latina depois do Brasil. Tato Quiñones, um dos principais integrantes do projeto social Confraria da Negritude, propõe uma estrutura judicial específica para processar atos de discriminação racial. A pesquisadora Zuleica Romay também sugere, em um premiado ensaio, uma lei geral contra as discriminações.

Dominar as raízes culturais e históricas do racismo serviu para Damayanti Matos, integrante da RBA, crescer como pessoa. “Tomei consciência de meus direitos. Antes parecia normal ser chamada de negra. Agora sei que por trás do gesto inocente existe uma história de discriminação”. Envolverde/IPS