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Ativistas lutam para que meninas não sejam noivas no Sudão

Uma menina sudanesa com um bebê no acampamento de refugiados de al Salam. Foto: Sven Torfinn/CC BY 2.0
Uma menina sudanesa com um bebê no acampamento de refugiados de al Salam. Foto: Sven Torfinn/CC BY 2.0

 

Cartum, Sudão, 15/7/2013 – Advogados e ativistas pelos direitos humanos reclamam uma mudança na legislação sudanesa, que permite o casamento de meninas de apenas dez anos de idade. Alertam que é hora de se reconhecer a igualdade de gênero para que elas possam assumir o controle de suas vidas e deixar para trás o ciclo de matrimônios precoces e de abusos. A Lei de Status Pessoal dos Muçulmanos, de 1991, não concede às mulheres os mesmos direitos que dá aos homens. O Artigo 40, em particular, não fixa idade mínima para o casamento e só indica que as menores devem contar com “autorização de um juiz”.

Para a ativista Jadija al-Dowahi, da Organização para a Investigação e o Desenvolvimento (Sord), dedicada ao estudo dos casamentos precoces, “essa lei, basicamente, estabelece que as meninas podem se casar quando têm idade suficiente para compreender”. Além disso, o Sudão não ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, da Organização das Nações Unidas (ONU). O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que uma em cada três mulheres sudanesas que atualmente têm entre 20 e 24 anos se casou antes dos 18. Nas zonas rurais, onde o problema é maior, o casamento precoce chega a 39%, bem mais do que os 22% registrados em áreas urbanas.

Uma visita ao hospital de Cartum mostra claramente a amplitude do fenômeno no Sudão. Este centro de saúde conta com uma sala inteira para realizar cirurgias de fístula obstétrica. A maioria das pacientes são mães jovens, cujos corpos não estão totalmente desenvolvidos para parir e são propensas a sofrerem rompimento dos tecidos brandos que conectam a vagina com a bexiga ou com o reto.

Amel al-Zein, advogada que investigou os casamentos precoces, questiona a lei de status pessoal. “Ao contrário de outros países da região, ou outros islâmicos, a lei não especifica uma idade mínima para o casamento, que é a única garantia para controlar o matrimônio precoce”, advertiu al-Zein à IPS, acrescentando que as mulheres não podem recorrer à justiça para tramitar o divórcio nem empreender ações legais antes dos 18 anos, o que contradiz o fato de meninas de apenas dez anos poderem se casar.

“Quando começamos a estudar questões de justiça de gênero, vimos até que ponto o casamento precoce está inter-relacionado com muitos dos assuntos que as mulheres devem enfrentar”, observou al-Dowahi, cuja organização propôs várias reformas legais. “As que recorrem à justiça para lutar pela custódia dos filhos e se divorciar apenas descobrem o quanto é terrível e discriminatória a legislação”, ressaltou. A Sord criou, há três meses, um centro de assistência legal para mulheres discriminadas pela lei de status pessoal, e já recebeu 46 casos.

Por outro lado, o Conselho de Eruditos Sudaneses, um prestigioso órgão religioso, gera controvérsia. No ano passado, seu secretário-geral, professor Mohammad Osman Salah, falou a favor do casamento precoce, gerando profundo mal-estar entre os opositores. Salah declarou à imprensa, em outubro de 2012: “O Islã incentiva o casamento de menores para salvá-las da perversão ou de qualquer perigo derivado da condição de solteira, bem como para fazê-las felizes e preservar a reprodução”.

Entretanto, nem todos os eruditos compartilham sua opinião, porque o casamento precoce no Sudão é consequência de tradições culturais e sociais, não só de valores religiosos. Por exemplo, Sarah Mohammad, foi forçada a casar aos 13 anos porque a escola secundária feminina mais próxima ficava muito longe de sua aldeia. A falta de acesso à educação faz com que os pais sejam menos propensos a manter suas filhas em casa. Não é uma idade incomum para que uma menina se casar em sua pequena aldeia de Karko, no Cordofão do Sul. “Lembro o quanto me senti confusa. Não tinha ideia do que era o casamento. Era uma criança”, recordou Sarah, que completou 30 anos há duas semanas e é mãe de cinco filhos. O primeiro teve aos 16 anos.

Rana Ahmed (nome fictício) teve uma experiência diferente. Tinha 15 anos quando sua mãe descobriu que era noiva de um rapaz da região, após encontrá-la falando com ele pelo telefone. “Ficou muito brava e me disse que ia procurar um marido para mim antes que eu fizesse algo realmente errado. Me disse que dessa forma deixaria de brincar”, disse à IPS Rana, agora com 24 anos. Seu marido, que na época tinha mais de 35 anos, a levou por cinco anos ao estrangeiro, onde ele trabalhava como médico.

Quando regressaram ao Sudão, com seus dois filhos, ela sentiu que queria viver de novo. “Estava aborrecida e descontente com minha vida. Queria viver como outras moças da minha idade. Queria ter liberdade para sair com rapazes e me divertir”, contou Rana, agora divorciada. Al-Dowahi disse que a história de Rana não é única. As adolescentes não estão preparadas para as responsabilidades familiares ou para as relações sexuais. Algumas conseguem voltar a estudar, mas outras não podem seguir em frente e acabam tendo amantes e levando uma vida bem diferente.

Com a situação econômica do Sudão em contínua deterioração, os ativistas afirmam que as cidades se tornam semelhantes às zonas rurais: o casamento precoce se torna um problema angustiante, mesmo em ambientes urbanos e com estudos. A pesquisa da Sord mostra que em acampamentos de refugiados e no leste do Sudão costuma haver maior número de casamentos precoces, em relação a outros ambientes. O divórcio na mais precoce idade foi concedido no leste do Sudão a uma menina de nove anos. A tradição de sua comunidade indica que bebês de dois meses do sexo feminino são entregues em casamento, passando a viver com seu marido quando completam dez anos.

Lakshmi Sundaram, coordenadora da Girls Not Brides (Meninas, Não Noivas), uma associação global para acabar com o casamento precoce, acredita que é uma questão do valor que se dá à menina. “Devemos desafiar a concepção de que a menina se converte, ainda que com seu consentimento, em um bem econômico. Devemos atentar para um aspecto fundamental, que tem um valor intrínseco enquanto ser humano, não por seu valor econômico”, opinou à IPS. Envolverde/IPS