Canberra, Austrália, 16/3/2015 – Os conflitos no Oriente Médio e em outras partes do mundo criaram 13 milhões de refugiados, o que complica os esforços da comunidade internacional para cumprir sua responsabilidade de proteger as pessoas expulsas de seus países pela violência e perseguição.
Mas na Austrália, uma nação rica, afastada das zonas de conflitos e cujos 23 milhões de habitantes gozam de um produto interno bruto por pessoa de US$ 67,458 mil, o governo implantou duras medidas políticas contra os cerca de 1% de solicitantes de asilo que esperam encontrar refúgio em seu território.
Inclusive, o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Tortura, Juan Méndez, concluiu que o tratamento degradante dispensado pelas autoridades australianas se assemelha à tortura.
Em 2014, a Austrália recebeu 4.589 solicitações de asilo, bem abaixo das 29.009 na França e 51.289 nos Estados Unidos. Em 37 anos, este país registrou 69.445 solicitações de asilo, pouco acima das 67.400 que chegaram à Alemanha nos primeiros seis meses do ano passado.
A imigração é um assunto controverso em muitos países, mas a Austrália é o único que prende solicitantes de asilo em sua chegada e, de forma indefinida, em centros de detenção. Os que chegam por mar são transferidos para centros de detenção de ultramar nos Estados insulares de Nauru e Papua Nova Guiné, no Oceano Pacífico. Depois, não podem residir no continente embora recebam o status de refugiados. Há mais de um ano o governo começou a repelir os barcos que chegavam com solicitantes de asilo.
“Não há melhor medida de dissuasão para proteger nossa fronteira e evitar que barcos cheguem à Austrália do que impedi-los fisicamente”, afirmou em novembro o ministro de Imigração, Scott Morrison. É necessário para evitar que as pessoas se afoguem no mar, argumentou o governo, apesar de uma política que coloca em risco a vida de pessoas vulneráveis e viola o princípio de não devolução da Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1954.
O informe, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pelo relator especial Juan Méndez, conclui que “a emenda à lei de migração e poderes marítimos viola a Convenção Contra a Tortura porque permite a detenção arbitrária sem acesso a advogados”.
O documento também afirma que a detenção indefinida de solicitantes de asilo na ilha de Manus, de Papua Nova Guiné, junto com as denúncias de maus tratos e focos de violência, constitui uma violação dos direitos humanos “de tortura, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, como estabelecem os artigos 1 e 16 da Convenção Contra a Tortura”.
O diretor de defesa do Centro Legal de Direitos Humanos, com sede em Melbourne, Daniel Web, afirmou, no dia 9, que, “sob a legislação internacional, a Austrália não pode deter pessoas em regime incomunicável em um barco no meio do oceano”. E acrescentou que, “além disso, tampouco podemos devolver pessoas para um lugar onde correm risco de tortura. E precisamente são esses poderes que o governo buscou obter com as últimas reformas da lei marítima”.
A política de detenção prolongada e obrigatória de imigrantes também “é uma clara violação do direito humano internacional”, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, afirmou a Comissão de Direitos Humanos da Austrália.
A avaliação de refugiados foi suspensa por mais de dois anos para eliminar as vantagens dos que chegavam por mar de forma irregular. Em meados de 2014, cerca de 3.624 solicitantes de asilo, entre os quais 699 meninos e meninas, estavam em centros de detenção.
Os períodos de confinamento de aproximadamente 413 dias em duras condições de vida foi um fator fundamental para que 34% dos menores e 30% dos adultos fossem diagnosticados com graves problemas mentais. Foram registrados 1.149 incidentes de agressões leves, como abuso sexual, nos centros de detenção, e 128 casos de danos auto-infligidos entre as crianças, segundo a comissão australiana.
O último anúncio do governo de que libertará os menores de dez anos com vistos temporários não se aplica aos que chegaram antes de 19 de julho de 2013.
Especialistas australianos reconhecem que “o fundamental em qualquer política de asilo não é dissuadir, mas atender as necessidades dos que buscam proteção”. Entretanto, uma pesquisa de opinião realizada em 2010 mostra que 60% dos consultados aceitavam a linha dura do governo em matéria de imigração.
“A Austrália travou uma guerra ideológica com tanta loucura moral quanto poderia ser encontrada em uma ditadura”, escreveu a escritora e ecologista social Isobel Blackthorn. “Nos condicionam sistematicamente a aceitar o tratamento cruel de outros como necessário e inevitável”, acrescentou.
Por sua vez, o professor Nick Haslam, diretor da Faculdade de Ciências Psicológicas da Universidade de Melbourne, apontou à IPS que “os ativistas se apressaram em criticar os sucessivos governos, enquanto permitiram que a sociedade não assumisse sua parte”.
Não foram suficientemente questionadas as referências oficiais aos solicitantes de asilo como “ilegais”, sugerindo criminalidade, apesar das claras disposições do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados sobre “não serem ilegais e que respeitar o direito de pedir asilo inclui proporcionar uma recepção humana”.
Segundo Blackthorn, “muitas pessoas adotam sem questionar a visão e as falsidades dos dirigentes políticos e da mídia que procuram exagerar o sentido de nosso direito”. Durante o governo conservador do primeiro-ministro John Howard (1996-2007), “a autocrítica se confundiu gradualmente com uma posição australiana de ódio a si mesma”, escreveu o professor emérito da Universidade de La Trobe, em Melbourne, Robert Manne, em 2011, com uma passividade social e política incentivada.
A complacência e o “campanilismo” (apego incondicional à própria cidade e aos costumes que pode derivar em enfrentamentos com “os outros”) se exacerbaram pelo isolamento geográfico e duas décadas de prosperidade econômica interrompida graças ao auge dos recursos minerais.
Haslam ressaltou à IPS que a indiferença da população “se deve à percepção de que os solicitantes de asilo são oportunistas que buscam entrar no país de forma injusta” e que muitos são migrantes econômicos, mais do que necessitados de proteção. Na realidade, mais de 88% dos solicitantes de asilo entre 2008 e 2013 demonstraram ser refugiados legítimos.
Blackthorn afirmou que “a questão dos solicitantes de asilo alimenta um nacionalismo que se aproxima perigosamente da extrema direita”. Se a sociedade não usar seu direito democrático para reclamar uma mudança, é possível que a “Austrália caia no tipo de extremismo que fez com que muitas pessoas deixassem seus países”. Envolverde/IPS