Para dourar a pílula, toda vez que uma bala alcança um cidadão comum, fala-se que morreu devido a uma bala perdida. Assim, a mãe que se deparou com seu filho morto no sofá pela manhã, teve o consolo de saber que ele foi morto por uma bala perdida.
De onde vem a bala pouco interessa. Ela pode vir de um “bandido” ou de um policial. O fato é que ela tem um endereço certo: um inocente.
Domingo estive numa capela, periferia de Juazeiro, para participar da celebração de Santo Antônio e Pentecostes. Bairro pobre, insalubre, dormitório de cortadores de cana e empregados da fruticultura. Quando estávamos na liturgia da palavra, escutamos alguns estampidos na porta da capela. Pensávamos que eram fogos de artifício. Mas, um apavorado sujeito invadiu a celebração, escondeu-se entre os participantes, que começaram uma corrida desembestada para fugir das balas de quem o perseguia.
Pelo menos dessa vez a Igreja ainda foi um lugar seguro. Por respeito, ou sei lá o que, o perseguidor parou na porta e fugiu. O sujeito levou dois tiros de raspão nas costas e saiu ileso. Foi preciso interromper a celebração, chamar um camburão da polícia para dar proteção ao fugitivo e permitir que a celebração fosse reiniciada.
Assim, de costas para a rua, se uma das balas tivesse acertado nossas cabeças, morreríamos sem saber como, quando e onde.
Quando a celebração terminou, uma mulher dizia ao fugitivo: “você agradeça a Deus porque foi salvo por Santo Antônio e pelo Espírito Santo”.
O que temos não são algumas balas perdidas, mas uma sociedade violenta, tanto no meio urbano como no meio rural. A companheirada da CPT do Norte anda com a corda no pescoço, ameaçada de todas as formas, quando não fazendo enterro de lideranças populares que fazem a defesa das pessoas e da natureza.
Pois bem, o Brasil é violento desde sua gênese. Não conseguimos superar esse pecado original. Ainda mais porque a violência provém da dinâmica do próprio modelo de desenvolvimento, justificado por gente como Aldo Rabelo. Em seu artigo na Folha de S.Paulo diz textualmente que “o Brasil perdeu mais de 23 milhões de hectares de agricultura e pecuária, em dez anos, para unidades de conservação, terras indígenas ou expansão urbana” (Folha de S. Paulo, 14/6/2011). Ele não fala dos 80 milhões de hectares degradados que o agronegócio deixou por onde passou.
O raciocínio do deputado é daquelas cartilhas marxistas dos anos 1970 do milênio passado. Para ele, a produção pode e deve passar sobre tudo que nos proporciona bem-estar ambiental e, sobretudo, sobre as nações indígenas que atravessam os caminhos do capital. Esse já era o raciocínio do Borba Gato e outros bandeirantes.
Essa esquerda acaba pensando e agindo identicamente a Kátia Abreu, Ronaldo Caiado, Taradão e similares.
Desse jeito, só podemos ser salvos por Santo Antônio ou pelo próprio Espírito Santo.
* Roberto Malvezzi é membro da Equipe Terra, Água e Meio Ambiente do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano).
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.