Recentemente, o colunista do Correio da Cidadania Wladimir Pomar publicou dois artigos que me chamaram especialmente a atenção: “Perguntas de um ignorante ambiental” e “Belo Monte”, nos quais ele defende a construção de hidrelétricas como estratégias de desenvolvimento para o país, e este barramento, em especial, no Rio Xingu. Como colaborador frequente do Correio da Cidadania em questões ligadas ao meio ambiente, ecólogo e, acima de tudo, atingido direto por Belo Monte, pois resido na cidade de Altamira, no Pará, onde esta obra está sendo desenvolvida, sinto-me na obrigação de respondê-lo enfática e prontamente.
Antes de tudo, é curioso que o colunista, que no primeiro artigo diz que “se vê um perfeito ignorante ambiental”, afirma categoricamente que o aquecimento global é um “dogma” (suposta verdade, inquestionável por seus defensores), ao invés de um fato científico mensurável, apesar da infinidade de cientistas sérios que estudam o assunto há algumas décadas. Mais adiante, supostamente na posição de “ignorante ambiental” ele se pergunta: “por que os que defendem o abandono da construção de hidrelétricas, desconsiderando os avanços técnicos e sociais que permitem mitigar em muito os danos ambientais e sociais, não assinam uma declaração pública comprometendo-se a não se manifestarem quando os apagões elétricos começarem, por falta do aumento da geração elétrica?”. Eu realmente gostaria de saber que avanços técnicos e sociais são estes, pois não são nada visíveis aqui ao lado do canteiro de obras da maior hidrelétrica em construção no Brasil. Lamentavelmente, sua defesa cega de Belo Monte revela que sua “ignorância” vai além do aspecto ambiental, mas que também é econômica, política e social, como fica mais claro no seu artigo mais recente.
Pomar inicia seu último texto dizendo que, durante a Cúpula dos Povos da Rio+20, a construção da hidrelétrica de Belo Monte “foi transformada num dos crimes ambientais mais graves a ser derrotado pelos guerreiros ambientalistas”. Na verdade ela não foi “transformada” em crime. Trata-se de fato do mais grave crime ambiental da atualidade em todo o mundo. Isso porque o Xingu, até pouquíssimo tempo, era o último grande rio da Amazônia em bom estado de conservação, livre de hidrelétricas e amplamente ocupado por povos indígenas. Além do mais, ao contrário do que jura o governo, para ser viável economicamente, Belo Monte será a primeira de uma série de barragens a serem construídas neste rio e sua energia servirá apenas para atender às necessidades industriais (na forma de minérios cuja extração e processamento exigem grandes quantidades de eletricidade) das grandes potências capitalistas, e não ao desenvolvimento econômico e social brasileiro, como parece acreditar o ingênuo colunista.
Mais adiante, Wladimir Pomar lamenta que a propaganda oficial de Belo Monte, exibida durante a Rio+20 tenha sido um “anúncio institucional tradicional sobre a grandeza da obra” enquanto ele esperava que fosse detalhado “o fato de que a represa de Belo Monte terá um baixo impacto ambiental, em parte devido à alagação mínima, por empregar turbinas de geração de fio d’água, em parte por ter planos para permitir a piracema e a navegação fluvial. E que comprovasse que o impacto social previsto deverá ser mais positivo do que negativo, por incluir medidas de promoção do desenvolvimento econômico e social das populações indígenas e não indígenas atingidas pela obra, além daquelas necessárias para evitar o colapso dos serviços públicos de saúde, educação e outros, em virtude do aumento populacional da região durante as obras… Explicando em detalhes tudo o que está planejado para evitar os erros do passado e atender às demandas de mitigação ambiental e desenvolvimento social, transformando a mobilização contra a represa de Belo Monte em mobilização a favor”.
Para começar, as obras de Belo Monte já estão em andamento a todo vapor há mais de um ano. Então não é mais o momento em se falar no que está “planejado” para evitar os erros do passado, mas no que já foi feito. Ou melhor, do que não foi feito. Aqui em Altamira, já vivemos uma situação de “colapso dos serviços públicos de saúde, educação e outros, em virtude do aumento populacional da região durante as obras”. Nada, ou praticamente nada, tem sido feito no sentido de evitá-los. O que, evidentemente, não se percebe do escritório do colunista no Rio de Janeiro, mas está bem claro para todos os que vivem do lado de cá. E são esses os grandes responsáveis pela resistência contra a barragem, e não as tais “forças econômicas e políticas interessadas em impedir o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil”, que o colunista evoca para explicar a resistência à obra.
Além disso, para os milhares de habitantes desta região, que terão as suas casas alagadas e que, a essa altura dos acontecimentos, ainda não foram sequer informados sobre para onde serão transferidos, esta não será uma “alagação mínima”. Nem para as várias pessoas que, como eu, terão o lindo rio à frente de sua cidade transformado em um lago podre. Nem será uma “alagação mínima” para as várias espécies de peixes, como o ornamental acari-zebra, que não ocorrem em nenhum outro lugar do planeta, e que serão extintas com a destruição das corredeiras da Volta Grande do Rio Xingu.
As tais escadas para a piracema de que Wladimir Pomar fala são uma bobagem, pois não resolvem o problema dos peixes. Basicamente o que acontece é que peixes de corredeiras, como os grandes bagres, podem até subir as escadas para piracema, mas ao chegar ao lago acima da barragem, são imediatamente devorados por predadores de águas paradas como piranhas, ou simplesmente não resistem à baixa oxigenação das águas do lago, e morrem. Ninguém é obrigado a saber de tudo e o colunista realmente não precisaria estar ciente destes fatos ecológicos fundamentais das barragens, nem sobre a extinção de espécies endêmicas, ou que as barragens nas regiões tropicais, por meio da decomposição da vegetação em ambiente anaeróbico, produzem grande quantidade de metano, o que contribui imensamente para o aquecimento global (que é real e a maior ameaça ao futuro da humanidade), tanto quanto fontes energéticas oriundas de combustíveis fósseis de potência equivalente.
Mas ele deveria saber que não somos ameaçados de “apagão” por problemas na geração de energia elétrica, mas pelo sistema de distribuição que é sucateado, e que as grandes potências capitalistas são as grandes interessadas na construção de Belo Monte, pois lucrarão duas vezes, com a venda dos equipamentos para o funcionamento da usina e com a compra de energia barata na forma de folhas de alumínio, subsidiadas pelo povo brasileiro que é quem está financiando a construção da barragem por intermédio do BNDES. Se Belo Monte fosse de fato um bom negócio não precisaria ser construída por um consórcio fundamentalmente estatal, financiado por recursos públicos. Mesmo deixando de lado os aspectos ambientais, só se defende essa obra faraônica, destrutiva e desnecessária, por interesses pessoais ou ignorância econômica e social.
Finalmente, restam ainda os aspectos político-eleitorais, que desconfio que sejam a motivação fundamental do referido colunista. Apesar de todo o prejuízo econômico, social e ambiental trazido por Belo Monte, a obra é uma verdadeira maravilha para as grandes empreiteiras responsáveis pela sua construção e que foram os grandes financiadores da campanha da candidata do PT à Presidência da República. Como bem escreveu o leitor João Pedro no espaço de comentários sob o último artigo: “Você (Wladimir Pomar), como analista político, deveria ter um mínimo de discernimento para perceber que a sua identificação pessoal com o governo atual o está impedindo de analisar os fatos corretamente em relação à UHE de Belo Monte”.
De fato, deve ser duro para um militante histórico de esquerda reconhecer que o grande projeto da presidente que ajudou a eleger, do partido que ajudou a criar, é um velho projeto da mesma ditadura militar que ele ajudou a combater, patrocinado pelo grupo político de José Sarney, que é o que há de mais atrasado nesse país, atendendo aos interesses do capital internacional. A alternativa a isso é a ignorância ou o silêncio, das duas a melhor opção.
* Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.