Rio de Janeiro, Brasil, 16/8/2012 – A suspensão judicial da construção da hidrelétrica Belo Monte na selva amazônica pode ser mais uma batalha de uma incessante guerra nos tribunais. Contudo, deixa uma lição para outras obras de infraestrutura: a exigência jurídica de diálogo com as populações nativas. A determinação de paralisar a obra de Belo Monte no Rio Xingu, no Estado do Pará, foi tomada na noite do dia 13, de forma unânime pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região e anunciada no dia seguinte.
Os juízes consideraram que a construção da que seria a terceira maior hidrelétrica do mundo não respeitou a Constituição nem o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), porque as comunidades indígenas afetadas não foram consultadas previamente. “A Constituição Federal e o Convênio da OIT dizem que o Congresso deve fazer uma consulta aos povos tradicionais que sofrerão o impacto, antes de autorizar qualquer programa de exploração de recursos existentes em suas terras”, apontou o relator do processo, magistrado Antônio de Souza Prudente, ao anunciar a decisão.
“Pelo contrário, deputados e senadores aprovaram o decreto que permitiu o início das obras, prevendo uma consulta póstuma e não prévia”, acrescentou Prudente ao interpretar esse fato como próprio de “uma ditadura”. Os “povos indígenas devem ser ouvidos e respeitados”, ressaltou.
Belo Monte é um dos grandes projetos de infraestrutura planejados pelas administrações do Partido dos Trabalhadores tanto no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) quanto no de Dilma Rousseff. O governo argumenta que esta obra, que inundará 516 quilômetros quadrados, é necessária para atender a crescente demanda energética do país.A hidrelétrica terá capacidade máxima de geração de 11.233 megawatts (MW) em épocas de cheia do rio, embora sua capacidade média esteja prevista para 4.500 MW, e abastecerá cerca de 26 milhões de pessoas, também contribuindo para aumentar a oferta de emprego.
No entanto, as aldeias indígenas e comunidades tradicionais que vivem nas margens do Xingu são contra a represa porque, apesar de não inundar seus territórios, desviará 80% do caudal do rio e causará, entre outros efeitos, perda de água e redução da pesca. Desde que começaram as obras preliminares, essas comunidades realizaram inúmeros atos de protesto, com ampla repercussão internacional, que aumentaram após o início da construção, em 2011.
Em abril deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também solicitou a suspensão de Belo Monte, justamente por falta de consulta aos indígenas. O governo não aceitou o pedido. “Este problema de Belo Monte deveria servir de advertência para que outros grandes empreendedores contemplem as comunidades indígenas envolvidas. Em lugar de uma atitude autoritária deve-se tomar o caminho do diálogo. Esta decisão judicial chama a atenção para a exigência jurídica do diálogo”, disse à IPS o jurista Dalmo Dallari.
“A decisão do Tribunal confirma novamente a falta de consentimento das comunidades e a necessidade de existirem estudos de impacto ambiental integrais antes de serem aprovados projetos desse tipo, que podem causar danos irreparáveis”, declarou, do México, à IPS o advogado Joelson Cavalcante, da Associação Interamericana para a Defesa do Meio Ambiente, que dá apoio legal às comunidades afetadas. “Comemoramos esta decisão porque dá esperança de que os juízes no Brasil aplicarão as leis nacionais e internacionais para proteger os direitos das comunidades e do meio ambiente”, acrescentou.
Dallari, membro da Comissão Internacional de Juristas e assessor de outras aldeias indígenas em conflitos ambientais e de terras, recordou que, em casos semelhantes, já houve consultas e que isto não necessariamente significa a interrupção definitiva das obras. Recordou o caso da central de Tucuruí, também no Pará, em que após uma consulta com as populações originárias chegou-se a um acordo que “atendeu tanto aos interesses nacionais quanto aos dos indígenas”. Depois do diálogo, foi reformulado o projeto de instalação de uma linha de transmissão para que não passasse sobre a aldeia, mas em um de seus lados, acrescentou. “Ouvir os povos indígenas não significa criar obstáculos, mas fazer os ajustes necessários”, enfatizou.
Dallari recordou outros casos, como a construção de estradas em áreas indígenas ou da hidrelétrica binacional de Itaipu, junto com o Paraguai, nos quais também não se consultou as comunidades próximas previamente. “Estas empresas encarregadas das obras costumam não se dar conta de que existe essa obrigação jurídica de ouvir os indígenas. E querem impor suas soluções contemplando apenas aspectos técnicos e econômicos, quando é preciso ouvir os aspectos humanos”, afirmou.
Quanto a Belo Monte, o Tribunal determinou que as obras somente poderão ser reiniciadas depois de consulta aos indígenas por meio do parlamento. Não está claro se no caso de estas comunidades manterem sua posição de rejeição à hidrelétrica esta será cancelada definitivamente. Dallari acredita que isso dependerá dos argumentos apresentados. Mas confia que, como em situações anteriores, se chegue a um acordo que contente a todos. “Sempre existe a possibilidade de adaptação do projeto para conciliar interesses. E é possível que Belo Monte vá por esse caminho, com adaptações que contemplem o interesse das duas partes”, afirmou.
As comunidades envolvidas acreditam que o governo superestima a importância energética de Belo Monte e defendem outros tipos de geração limpa, como a solar e a eólica, que não alterem a vida das comunidades amazônicas. Em consequência da represa, cem quilômetros da Volta Grande do Xingu sofrerão um efeito agravado de seca no verão, pois perderão a maior parte de suas águas, que serão retidas em uma represa e desviadas por um canal para uma segunda geradora de energia. Nesse trecho vivem cerca de 200 indígenas em duas reservas, Paquiçamba e Arara, e centenas de famílias camponesas. O rio é sua principal fonte de proteínas e seu meio de transporte.
Antônia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, no Pará, teme que as terras indígenas, até agora “muito conservadas”, sejam afetadas. À IPS contou que, já com o início das obras, o rio começou a secar em algumas partes e que “começaram” a perder peixes. Se a obra prosseguir, ela teme que esses efeitos se agravem e os indígenas “percam as terras para suas futuras gerações. Se tiverem que ir para as terras dos brancos, serão discriminados, afetados pelo alcoolismo e pela violência das cidades”, alertou.
Por isso, Antônia comemorou a decisão da justiça, diante da qual o governo e o Consórcio Norte Energia, construtor da central, já não pode continuar se colocando “acima do bem e do mal”, observou. “Isto fortalece nossa esperança e nosso movimento de resistência contra Belo Monte e esse modelo de hidrelétricas depredador, destruidor da vida e do meio ambiente”, ressaltou.
A decisão do tribunal estabelece que o descumprimento gerará multa diária de R$ 500 mil. Até ontem, o Consórcio Norte Energia dizia não ter sido notificado da decisão, que pode ser alvo de apelação em instância superior. O começo de operação da primeira turbina de Belo Monte, avaliada em cerca de US$ 13 bilhões, está previsto para 2015. E a finalização total da obra para 2019. Envolverde/IPS