Bernanke e o enigma da crise

“Por que, antes da crise financeira, uma economia madura como a dos Estados Unidos recebeu um fluxo líquido de capitais superior a 6% do PIB? Uma fração significativa desse fluxo reflete um fenômeno mais amplo, apelidado por mim de ‘excesso de poupança global’”, Ben Bernanke, presidente do Conselho do Federal Reserve.

Bernanke não está só na defesa da tese do “excesso de poupança”. A maioria dos economistas adotou essa xaropada. Assim, fica mais fácil explicar os ditos desequilíbrios globais e a caminhada para a crise. Chineses et caterva poupam demais, produzem elevados saldos em conta corrente, acumulam reservas em dólar para impedir a valorização de suas moedas nacionais. E, insensatos, ao comprar ativos financeiros públicos e privados norte-americanos deprimem as taxas de juro e fomentam o consumismo e a bolha de ativos.

No arsenal de conceitos macroeconômicos, a poupança goza de um prestígio tão inabalável quanto suspeito. Desde Nassau Sênior, a justificava do lucro buscou suas razões morais e econômicas na recompensa da “abstinência” ou na postergação do consumo presente. Assim, a poupança tornou-se uma das casamatas inexpugnáveis da chamada teoria econômica. Só os heréticos – de grande, médio e pequeno portes – ousaram desafiar esse dogma da religião do mercado. Entre os grandes, Marx e Keynes lançaram as mais furiosas diatribes, entremeadas de sarcasmos, contra o que consideravam a obra-prima dos filisteus.

Na visão dos adeptos do “excesso de poupança”, a parcimônia dos emergentes torna insaciável o vício dos consumidores avançados. Mas o capitalismo realmente existente cultiva o hábito de zombar do senso comum e da tentativa de estender os conceitos da economia doméstica para a economia como um todo. O economista defunto John Maynard Keynes dissentia dos admiradores da poupança. Para ele, a origem do movimento é o gasto financiado a crédito. Ao adiantar recursos líquidos para empresas e famílias, o sistema de crédito (bancos e demais intermediários financeiros) impulsiona o aumento do emprego, da renda e, portanto, da poupança agregada. Para o conjunto da economia, é impossível elevar a poupança antes do aumento da renda. Não raro os macroeconomistas são vítimas da falácia de composição: se a comunidade resolve elevar a poupança sem aumento do gasto, a renda cai e ninguém consegue poupar coisa alguma.

Os empresários e as famílias em conjunto podem gastar acima de suas receitas correntes por conta da existência do sistema de crédito, que inclui os bancos e (hoje) os demais intermediários financeiros. Operando num regime de reservas fracionárias e, sobretudo, sob a proteção de uma instituição central provedora de liquidez e redutora de riscos, os bancos desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de multiplicar depósitos, isto é, passivos bancários que são aceitos como meios de pagamento. Esses depósitos podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou de liquidar contratos. No processo de “fechamento” do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não gasta, apropriada pelas famílias e pelo lucro das empresas, definem o montante da poupança agregada, ou seja, o funding adicional necessário ao pagamento do serviço das dívidas e a acumulação de riqueza líquida.

A China adotou a estratégia da obtenção de elevados saldos em conta corrente e da acumulação de reservas, com o propósito de impedir a valorização de sua moeda e manter a competitividade de suas exportações. No período que precedeu a crise, a origem do circuito virtuoso (ou vicioso?) era o gasto das famílias norte-americanas (e outras famílias “avançadas”). Daí o crescimento da renda agregada na China e países adjacentes e, finalmente, a acumulação de lucros nas empresas locais (nativas ou estrangeiras), ou seja, a poupança do “sistema sino-americano”. Não sem razão, as empresas americanas buscavam localizar seus investimentos na China de mão de obra barata, promovendo a fratura entre o consumo e o investimento no chamado espaço sino-americano.

Ao utilizar as “poupanças” em dólar para financiar o déficit em conta corrente dos Estados Unidos, os chineses geravam uma demanda pelos papéis norte-americanos, o que assegurava  a estabilidade das taxas de câmbio de sua moeda em relação ao dólar.

* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, e consultor editorial de Carta Capital.

** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.