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Quando um bigode é questão de vida ou morte

Um aldeão em Ali Saray, povoado semidestruído do Iraque. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Um aldeão em Ali Saray, povoado semidestruído do Iraque. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Ali Saray, Iraque, 5/11/2013 – “A alma deve reencarnar mil vezes antes de se tornar una com Deus”, disse Rajab Assy Karim, morador de Ali Saray, 190 quilômetros ao norte de Bagdá. O Iraque está repleto de “atalhos” para chegar a esse final, e parece que vários passam por esta pequena aldeia do deserto. As poucas centenas que habitam as casas de adobe do lugar são kakais, seguidores de um antigo credo pré-islâmico cuja simples sobrevivência no século 21 e nessa região é um milagre.

Karim sabe disso e dedica a maior parte de seu tempo livre a reunir livros para a única biblioteca que existe nas 12 aldeias kakai concentradas na região. “Estamos na metade do caminho entre Tikrit – a região natal do falecido ditador Saddam Hussein (1979-2003) e reduto de seus seguidores – e a Região Autônoma Curda do Iraque. A área está saturada de terroristas e nós somos um de seus objetivos mais fáceis”, disse à IPS.

Os escombros de 13 casas destruídas este ano testemunham a violência à qual está submetida a população local. É o preço a pagar por ser curdo e a “pagamos” em uma das regiões mais instáveis do Iraque. Junto com os yazidies, seguidores de outra religião pré-islâmica, se diz que os kakais são os que mantiveram a fé original dos curdos. O kakaísmo derivaria da palavra curda “kaka”, que significa “irmão mais velho”.

Os kakais têm fama de manter suas crenças em segredo. “Nos acusam de não revelarmos detalhes de nossa fé, mas é apenas uma medida para nos protegermos do entorno hostil”, explicou à IPS o único juiz kakai do Iraque, Jassim Rashim Shawzan. “Vivemos no Oriente Médio, onde não há democracia, nem liberdade de expressão, onde não há direitos”, ressaltou.

Shawzan afirma que seu povo procede das montanhas curdas do Irã, nas proximidades da cidade de Kermansha, mais de 400 quilômetros a sudoeste de Teerã. Essa área está salpicada de templos kakai. “É onde se encontra o único volume que existe do Zanur”, o livro sagrado dessa fé.

Após séculos vivendo entre vizinhos muçulmanos, os kakais adotaram alguns de seus tabus, como a proibição de comer carne de porco. Mas ainda se diferenciam. A maioria dos homens é reconhecida por seus longos e destacados bigodes que deixam crescer. O costume islâmico estabelece bigodes pequenos e bem aparados. Shawzan também menciona um período de jejum, mas, ao contrário do mês que dura o Ramadã muçulmano, esse é de apenas três dias.

O juiz afirma que o Iraque pós-Saddam Hussein – derrubado em 2003 pelos Estados Unidos e enforcado em dezembro de 2006 – está longe de ser um país que garanta os direitos constitucionais às suas minorias. “Saddam tirou muitas de nossas terras e aldeias para colocar famílias árabes de outras regiões do Iraque. Desde 2003, centenas de kakais foram assassinados por extremistas e muitos foram obrigados a fugir”, enfatizou.

A organização Minorities Right Group International, com sede na Grã-Bretanha, estima que no Iraque vivam cerca de 200 mil kakais. Em um relatório publicado em 2011, essa entidade humanitária menciona “ameaças, sequestros e assassinatos” na área onde vive essa minoria. Além disso, alguns líderes muçulmanos locais teriam ordenado um “boicote às lojas e outros comércios dos infiéis”.

Hoje, a maioria dos kakais acredita que sua segurança melhoraria se suas aldeias ficassem legalmente sob o mandato da Região Autônoma Curda, que tem uma violência menor comparada com o resto do país. Sirwan monta guarda em um posto na entrada de Ali Saray. Usa óculos escuros e um capacete antibalas. Seu espesso bigode o identifica.

“Se, finalmente, nos derem a oportunidade de realizar um referendo para decidir se devemos estar sob o controle de Erbil (capital administrativa da região curda, 310 quilômetros ao norte de Bagdá) votaremos a favor e em massa”, disse Sirwan. O soldado explicou que essa consulta popular estava marcada para 2007 a fim de resolver o status legal das “áreas em disputa” entre Erbil e Bagdá, mas foi adiada até que sejam efetivadas medidas para contrabalançar as campanhas de “arabização” de Saddam.

O escritor Falakadin Kakaye, que constituía uma ponte entre os kakais e a administração curda, morreu no mês passado. Antes de assumir as relações entre Erbil e Bagdá foi nomeado em duas ocasiões ministro da Cultura do governo curdo. Kakaye deixou um país com graus de violência que não se via desde 2008. Mais de mil pessoas morreram em ataques cometidos em julho deste ano.

Há outros que tentam preservar os direitos e a cultura dos kakais. Saad Salloum, editor da revista Masarat, luta para documentar a diversidade do Iraque antes que desapareça. “A partir de 2003, nós iraquianos redescobrimos nossa pluralidade. Mas, longe de aceitá-la como um sinal enriquecedor de nossa identidade, hoje temos mais medo de nosso vizinho do que de um míssil ou arma de destruição em massa”, opinou. Envolverde/IPS