Experiências de agricultores no Norte de Minas Gerais mostram que garantia do direito à terra para produzir de forma diversificada e em sintonia com o bioma natural é uma receita eficaz para promover a saúde.
A saúde de uma população não se mede apenas pela quantidade de doenças ou número de vezes que estas pessoas precisam consultar um médico. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde é um “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. A oitava Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, em 1986, avança ainda mais e define que a saúde é a resultante das condições de “alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde”. Para camponeses da região Norte de Minas Gerais, a saúde se conquista com o acesso a terra, produção agrícola diversificada e preservação do Cerrado, que é o bioma típico da região e que eles garantem se tratar de uma “verdadeira farmácia”.
Em visita ao assentamento Americana, no município de Grão Mogol, pesquisadores, estudantes e militantes de diversos movimentos sociais puderam ver na prática como as condições de alimentação, acesso a terra, trabalho, meio ambiente, entre outras condicionantes, de fato interferem na saúde. A visita fez parte da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas Gerais, uma das etapas que antecedem o Encontro Nacional Diálogos e Convergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar e Economia Solidária.
Em Americana, parte dos assentados desenvolve um tipo de agricultura baseada na agroecologia, sem utilização de agrotóxicos, aliando a plantação de várias espécies de alimentos com o extrativismo no Cerrado, que resulta em frutos, óleos e outros tipos de produtos alimentícios e com funções medicinais.
Os assentados também estão construindo uma agroindústria com o objetivo de processar mais e melhor os frutos do Cerrado e, consequentemente, alcançar mais condições de comercialização. Planeja-se que da agroindústria saiam óleos, geléias, doces e também que o espaço abrigue um banco de sementes. Quando os moradores do assentamento foram perguntados se a saúde deles estava melhor com esse modelo de produção, eles responderam que sim, pois hoje têm uma vida digna, com alimentação adequada. “Isso expressa um grande nível de consciência desses trabalhadores, de que a saúde faz parte de uma discussão mais ampla sobre vida digna. E a vida digna também significa uma relação de não subordinação aos grandes interesses econômicos que destroem a natureza, exploram e expulsam trabalhadores rurais e populações tradicionais desses territórios. Além disso, significa ter uma relação de respeito e convivência com a natureza, com um aproveitamento dos recursos que ela oferece, de forma harmônica entre a saúde dos ecossistemas e a saúde das pessoas”, analisa o pesquisador da Fiocruz e da Rede Brasileira da Justiça Ambiental, Marcelo Firpo, presente à oficina.
Um médico visita o assentamento Americana uma vez por mês, mas os moradores se orgulham de não precisarem procurá-lo. Firpo ressalta, no entanto, que eles têm consciência de que para problemas mais graves será preciso recorrer aos hospitais ou postos de saúde e que estes serviços precisam ser melhorados. Marcelo ressalta como as experiências em Americana – tanto de consumo e produção de uma alimentação saudável, quanto de organização dos trabalhadores – resultam em uma boa condição de saúde. “O fato de não trabalharem com agrotóxicos, de se alimentarem com alimentos de grande qualidade e acima de tudo terem um sentido de vida que dá a essa comunidade uma completude do ponto de vista da ação política, da existência, do resgate da continuidade da cultura dessas populações, dá um sentido de vida que fortalece essas comunidades e permite que elas tenham uma compreensão de saúde ampliada”, afirma.
“Vivemos numa farmácia natural”
O óleo de rufão, um fruta típica do Cerrado, é eficaz contra dores no estômago, gastrite e reumatismo; o chá de unha danta é um bom remédio para ajudar a digerir; e a carqueja é diurética, além de ajudar a combater problemas no fígado. Quem conta as propriedades medicinais das plantas é João Altino, morador do assentamento Americana. Não é difícil encontrar na região os chamados “raizeiros”, pessoas com vasto conhecimento sobre as potencialidades medicinais da flora típica do Cerrado. “Muitos declararam que no Cerrado eles não passam fome, a cada estação surgem novos frutos, mas isto é parte de um conhecimento ancestral. Este também é mais um lugar do conceito ampliado de saúde , pois a saúde também está determinada pelo grau de cultura e conhecimento que a pessoa tem do seu território”, comenta o professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UNB) e do Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), Fernando Carneiro.
Marcelo completa que a utilização de fármacos naturais pelos raizeiros, combinada ao consumo de alimentos saudáveis, e à atuação política que dá sentido a estas comunidades, provoca vitalidade e promove a saúde das populações. Ele acredita que a prática agroecológica é central neste processo. “O projeto da agroecologia não somente se refere à não utilização dos agrotóxicos, à maximização dos recursos dos ecossistemas, às formas de combinar e maximizar a rotatividade de produtos adequados e naturais aos ecossistemas, ou que neles possam se reproduzir de forma mais harmônica, mas também está relacionada a essa ideia de autonomia, de organização social, que veja também a própria produção agrícola no processo de democratização e justiça da sociedade. Então, não é possível falar de agroecologia dissociada de um projeto de sociedade democrático”, reforça.
Modelo de desenvolvimento
Na comunidade de Vereda Funda, próxima ao município de Rio Pardo de Minas, também visitada pelos participantes da Oficina, os moradores conseguiram retomar a terra que o governo estadual havia cedido a empresas para plantação de eucalipto. Os estragos da monocultura da espécie, plantada em quase todo o território, foram logo notados pelos agricultores que, após várias mobilizações, conseguiram reaver a terra que era deles há muitas gerações. Agora, os moradores de Vereda Funda estão em outra batalha – pela regeneração do Cerrado, o bioma nativo do local.
Para Fernando Carneiro, as duas experiências – a de Americana e de Vereda Funda – mostram a relação de saúde com o desenvolvimento. “Muitas vezes a agenda da saúde é muito voltada para questões muito setoriais, ligadas à questão direta da doença, e não priorizamos questões que são estruturais e determinantes para as populações. O que pudemos perceber nesses dias é que o modelo concentrador de terras e que nega a história dessas comunidades não só destruiu o ambiente, secou nascentes e afetou a dinâmica do ecossistema, como fez com que essas pessoas perdessem as perspectivas de pensar no próprio território, e um exemplo disto é que muitas pessoas migraram”, observa.
Marcelo lembra ainda que, no caso da comunidade Vereda Funda, houve também uma utilização intensa de agrotóxicos, cujos prejuízos para a saúde da população ainda não estão mensurados, até pelo fato de a monocultura do eucalipto ainda cercar a comunidade. “A cinco quilômetros da comunidade é possível encontrar plantios de eucalipto da empresa Gerdau, e os impactos dos últimos 30 anos do uso de agrotóxicos nesses eucaliptais sobre os ecossistemas e a vida das pessoas, principalmente as que aplicaram (os agrotóxicos), permanece uma incógnita”, alerta.
Conferência Nacional de Saúde
Para Fernando, o tema do modelo de desenvolvimento para o país, e, consequentemente para a agricultura, precisa ser discutido sempre que se pensar em saúde. Ele lembra que 2011 é ano de Conferência Nacional e que este debate precisa acontecer. “A saúde não pode se furtar a debater que projeto de país nós queremos. Não podemos ter a saúde apenas para atender e contar os mortos e lesionados pelo processo de desenvolvimento, como no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e outros. A saúde tem que ser componente estratégico para pensarmos projetos que gerem vida e não morte. Então, a perspectiva é a de que não se pode ficar apenas no discurso da atenção, embora ele também seja fundamental. Se não ficaremos enxugando gelo em vez de atuar nas verdadeiras causas do processo”, alerta.
* Raquel Júnia é da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz.
** Publicado originalmente pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e retirado do site IHU On-line.