Análise de André Lima, Assessor de Políticas Públicas do IPAM, sobre a atual situação do Código Florestal Brasileiro.
A queda de braço entre ruralistas e não-ruralistas da base do governo impediu que o novo “acordão”[1] aprovado pela Comissão Mista no final de agosto fosse à votação no Plenário da Câmara dos Deputados na semana passada. Mas quem perde mais com a não votação e consequente perda de eficácia da MP 571?[2]
Agora, somente com muito esforço do governo a MP poderá ser votada antes de caducar (08 de outubro) em função do apertado calendário parlamentar truncado pelo recesso branco (eleitoral). Os “esforços concentrados” – período em que os parlamentares deixam as eleições locais e retornam para uma semana intensiva de votações, já definidos até o dia 08 de outubro não permitem mais a votação antes do prazo de caducidade.
Entretanto, o Governo negocia alterar o calendário dos esforços concentrados, principalmente no Senado, para tentar votar o relatório no Plenário da Câmara no próximo dia 18 de setembro, e já na semana seguinte (ou talvez na primeira semana de outubro) no Senado e consequentemente se submeter uma nova rodada de barganhas e pressões que certamente resultará em mais concessões e anistias aos ruralistas.
Depois de praticamente ter anulado a figura da Reserva Legal estabelecendo (a) isenções para até quatro Módulos Fiscais (MF), (b) possibilidade de recomposição de até 50% com espécies exóticas e (c) compensação com vegetação existente em outros estados do que faltar para completar a RL, agora o novo acordão selado por líderes do Governo com os deputados Ronaldo Caiado e Abelardo Lupion praticamente anula as áreas de preservação permanente ciliares conforme já escrevemos antes [3].
Além da denominada escadinha (redução progressiva de recomposição de APP proporcional ao tamanho de imóvel), trazida pela MP 571, direcionada aos pequenos e micro-produtores rurais (entre um e quatro MF), o novo acordão[4] permitirá, se aprovado e sancionado:
a) a recomposição total de APPs de mata ciliar com monoculturas frutíferas (um laranjal ou bananeiras, por exemplo),
b) a delegação aos estados (por meio dos Programas de Regularização Ambiental) do poder de definir os desmatamentos ilegais que podem ser consolidados em APP ciliares nos rios com mais de 10 metros de largura[5], com redução do mínimo a ser recomposto de 30 para 15 metros da mata ciliar;
c) a redução de recomposição mínima de APP ciliar degradada em imóveis com até 15 módulos fiscais (que podem chegar a mil hectares na Mata Atlântica e 1,5 mil ha na Amazônia) de 30 para 20 metros da vegetação marginal.
d) redução de 15 para cinco metros das APPs em margem de rios com até dois metros de largura, independentemente do tamanho dos imóveis, beneficiando também grandes desmatadores.
As lideranças ruralistas, apoiadas por parte expressiva da base do governo (PMDB, PTB, PP, PSC, PDT) e praticamente toda oposição (DEM e PSDB), se recusaram a votar o relatório no Plenário da Câmara, no dia cinco de setembro (Dia da Amazônia), pois exigem, como chantagem para votar, da Presidenta Dilma Roussef um compromisso formal de não-veto às “novidades” trazidas pelo acordão. Trata-se de chantagem materializada em um blefe dos ruralista. E o pior é que parece que o governo infelizmente pretende aceitar.
O governo tem agora em tese dois caminhos a seguir:
1 – Ir para um confronto (de cartas marcadas) nos Plenários da Câmara e do Senado em condições claramente adversas, onde está claramente pressionado pelo prazo exíguo e promover uma pseudo-disputa em Plenário entre o ruim (a defesa do texto original da MP) e o péssimo (novo relatório acordão dos Senadores Luiz Henrique e Jorge Viana) com chances certas de nova derrota[6]; e
2 – Deixar a MP caducar assumindo alguns riscos e poucos prejuízos, quais sejam: algumas lacunas na Lei a serem supridas principalmente por regulamentação federal (sob total governabilidade da Presidente) e subsidiariamente por legislação estadual (com restrições).
Em análise resumida e ainda preliminar podemos dizer que, que com algumas exceções[7], o prejuízo maior decorrente da não votação e consequente perda de eficácia da MP 571 defendida por parlamentares ruralistas (inclusive da base do governo) recairá sobre os médios e grandes produtores rurais infratores da legislação florestal.
As principais flexibilizações ou supostas lacunas nas regras de proteção de APP decorrentes da perda de eficácia da MP571, inclusive aquelas específicas que favorecem os agricultores familiares e pequenos produtores rurais, poderão voltar a vigorar tão logo a Presidente se disponha a fazê-lo por meio de decreto presidencial e, portanto, sem comprometer os pequenos produtores e sem atuar como freguês (mais uma vez) dos ruralistas mais retrógrados.
Nosso maior receio é que o governo, ao se deixar levar por esse evidente blefe, resolva negociar ainda mais com “seus” ruralistas e permitir com isso que o resultado final fique ainda pior do que já está.
Abaixo segue uma breve análise sobre as principais consequências da não votação da MP 571/12 e sua decorrente perda de eficácia.
a) Princípios de interpretação e aplicação da Lei (art. 1º A). Com a não votação da MP esse artigo cai por inteiro e não há retorno à redação original, pois foi objeto de veto. O artigo 1º A é importante no sentido de orientar a adequada interpretação, implementação e regulamentação da Lei, inclusive no que se refere às disputas no judiciário. O artigo traz elementos que vinculam a implementação da Lei a princípios e fundamentos de sustentabilidade, importância ecológica e ecossistêmica na implementação da lei e de compatibilidade com o desenvolvimento socioeconômico. Como o artigo 1º original foi vetado se a MP não for votada fica essa lacuna. Na prática não altera a implementação da Lei. Mas sem os princípios explicitados na Lei haverá maior liberdade e discricionariedade dos executores da Lei em interpretar as muitas incoerências e conflitos existentes na Lei. A perda não é fatal, pois a regulamentação pode recuperar os princípios.
b) Definições de veredas, pousio, área abandonada, área úmida e área urbana consolidada (art. 3º incisos XII, XIV, XV, XVI e XVII). O impacto da não votação da MP nestes casos é quase nulo. O que não estiver estabelecido em outras legislações como a legislação agrária que trata das áreas abandonadas, como a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, especialmente como Habitat de Aves Aquáticas, conhecida como Convenção de Ramsar, de 2 de fevereiro de 1971, ratificada pelo Decreto no 1.905, de 16 de maio de 1996, ou a Lei Federal 11977/2009 que trata da regularização urbana e das áreas urbanas consolidadas poderá ser definido em regulamento.
c) Definição de APPs de nascentes (inciso IV do artigo 4º) se a MP não for votada volta a redação aprovada na Lei 12651/12 que é melhor do que a definição dada pela MP. Sai a palavra “perene” trazida pela MP que dá a entender que as nascentes são somente as perenes e que não deve ser mantida ou recomposta APP em nascentes intermitentes. Volta a vigorar proteção de todas as nascentes inclusive as intermitentes.
d) APP de Veredas (art. 4º, XI). Com a caducidade da MP retorna a redação original da Lei 12651/12 que não estabeleceu a metragem mínima para proteção das APPs no entorno das veredas. Isso significa que as Veredas serão consideradas áreas de preservação sem, no entanto, os 50 metros de raio. Perderemos a proteção do entorno das veredas.
e) Lagoas Naturais ou barragens artificiais com superfície inferior a um hectare (§4º art. 4º) – Com a caducidade da MP retorna a redação original que permite novos desmatamentos no entorno desses reservatórios que deixaram de ser considerados APP pelo texto da Lei.
f) Aquicultura em APP ciliar de imóveis com até 15MF (inciso V, §6º, art. 4º) – Com a perda de eficácia da MP cai o inciso V que determina que esses novos empreendimentos em APP consolidada em imóveis com até 15 MF não podem promover novos desmatamentos, ou seja, somente podem ocorrer em APP já aberta (consolidada). Isso vai significar novas possibilidades de desmatamentos em APPs ciliares de rios de qualquer dimensão, em imóveis com até 15 MF.
g) Faixas de passagem de inundação em áreas urbanas e aplicação da Lei em área urbana (regiões metropolitanas e aglomerações urbanas) (art. 4º §§ 9º e 10) – Com os vetos dos §§ 7º e 8º e com a perda de eficácia dos novos § 9º e 10 aplicar-se-á às APPs em áreas urbanas o que estabelece o caput. Ou seja, deixa de existir a figura da faixa de passagem de inundação (que foi vetada e alterada pela MP) e fica sem a possibilidade de novas normas específicas serem definidas pelo Município ou o Estado.
h) Reservatório d’água artificial destinado à geração de energia ou abastecimento público (art. 5º). Com a perda de eficácia da MP 571 cai o artigo 5º atual da Lei sendo retomado o artigo 5º original A diferença é que a MP havia estabelecido um teto máximo de 30 metros de APP em caso de reservatório em área urbana.
i) APP criada para proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional (art. 6º, IX) – Com a perda de eficácia da MP a proteção dessas áreas somente poderá se dar (para além dos casos em que já é considerada APP) pela via da criação de UC específica prevista na Lei do SNUC. No entanto como vigora a Convenção de áreas úmidas o poder público pode estabelecer regras específicas para proteção dessas áreas, independentemente de indenização.
j) Proteção dos pantanais e planícies pantaneiras (art. 10). Com a perda de vigência da MP volta a redação original que trata da especificamente da proteção das planícies pantaneiras, mas não fala de proteção aos pantanais. Isso significa que pantanais fora de planícies em tese estão desprotegidos. Como a regra de proteção prevista no artigo 10 é extremamente flexível e “frouxa” o prejuízo com a queda da MP é quase nulo no que se refere aos pântanos. O ideal é a aprovação de uma lei específica para todo Pantanal e uma regulamentação que estabeleça um regime diferenciado para áreas úmidas que abrangem pântanos.
k) Proteção da Zona Costeira, manguezais, apicuns e salgados (art. 11A). Com a queda da MP cai todo artigo 11 A. Este artigo estabelece uma série de condicionantes para uso e ocupação parcial dos apicuns e salgados existentes nos manguezais (os já ocupados e novas ocupações em até 10 % por estado na Amazônia e 35% na Mata Atlântica). Como os manguezais em toda sua extensão são considerados APP pelo artigo 4º inciso o impacto da queda da MP nesse aspecto é maior nas atividades econômicas realizadas ilegalmente nessas áreas.
l) Obrigatoriedade de recomposição imediata de desmatamentos em RL posteriores a julho de 2008 (§§ 3º e 4º artigo 17). Apesar da melhor redação dada pela MP 571, com a perda de eficácia dos §§ 3º e 4º volta à vigência a redação original do §3º cuja confusa redação pode ser esclarecida e resolvida na regulamentação.
m) Controle de origem de produtos florestais pelo órgão federal (Art. 35§§ 1º e 5º). O prejuízo neste dispositivo é apenas a não previsão formal de bloqueio na emissão de DOFs (documento de origem florestal) no caso de verificada irregularidade. Como cabe ao órgão federal coordenar (o que implica nos termos do caput do artigo 35 em “fiscalizar”) o sistema obviamente que poderá tomar medidas necessárias para que eventuais irregularidades possam ser suspensas de ofício.
n) Dispensa de licença para transporte de produtos florestais (§5º art. 36) – Com a perda de eficácia da MP deixa de haver hipótese de dispensa de licença para transporte de produtos florestais para fins comerciais ou industriais.
o) Programa de incentivos econômicos à conservação e recuperação florestal (art. 41). Com a queda da MP volta a vigorar a redação original que estabelece prazo de 180 dias contados da entrada em vigor da Lei para desenvolvimento e entrada em vigor do Programa de incentivos. O impacto nesse caso é positivo, pois o governo deverá formular e aprovar o programa, regulamentar as cotas de reservas florestais dentre outras propostas como o Programa de Pagamento por Serviços Ambientais.
p) Programa de apoio técnico e incentivos financeiros (art. 58). Com a queda da MP volta a vigorar a redação original que diz que o poder público “instituirá” programa de apoio técnico e incentivos financeiros, em lugar de “poderá instituir”. Neste caso a perda de eficácia da MP é positiva para os agricultores familiares.
q) Consolidação do uso de APPs desmatadas ilegalmente até julho de 2008 e Redução de recomposição de APPs (art. 61-A). Como o artigo 61 que estabelece as hipóteses de consolidação de uso de áreas de preservação permanente degradadas foi vetado integralmente e substituído pelo 61-A, a queda da MP e consequentemente do artigo 61-A derruba por completo as hipóteses de “anistia” e redução de obrigação de recomposição de APP. Isso implica, por outro lado, na obrigação integral a todos os proprietários rurais (independentemente de tamanho de imóvel) de recomposição das APPs degradadas nos termos e parâmetros estabelecidos pelo artigo 4º da Lei 12651/12, conforme determina o §1º do artigo 7º que continuará em vigor[8]. Ou seja, a recomposição integral da APP será obrigatória já que, apesar do conceito de área rural consolidada existir na Lei (art. 3º, IV[9]), sua aplicação na prática nos casos de APP deixa de existir já que todo capítulo das “Áreas Consolidadas em APP” perder a eficácia. O impacto mais preocupante recai sobre os pequenos produtores rurais. Entretanto, por decreto federal, a Presidente da República poderá decretar atividades rurais consolidadas de interesse social para fins de flexibilização das metragens de APP a serem recompostas. Um decreto federal pode estabelecer as condições em que determinadas atividades devidamente registradas nos órgãos ambientais competentes desenvolvidas por agricultores familiares e pequenos produtores pode ser considerada de interesse social para fins de consolidação em APP.
r) Limitação de acesso a crédito para produtor fora do CAR (Art. 78 A). A perda de eficácia desse dispositivo é de impacto nulo, pois as condições de acesso a crédito podem ser ditadas por Resoluções do Banco Central, como inclusive hoje já há limitação de acesso a crédito a detentor de imóvel rural que consta de lista do Ibama de imóveis embargados na Amazônia[10].
s) Há outros dispositivos que perderão a eficácia com a não votação da MP, mas com impacto praticamente nulo em termos de proteção florestal – §3º do art. 15 (Computo de APPs na RL); §2º do art.14 (suspensão de aplicação de novas sanções no caso de requerimento de CAR); §1º do art. 29 (CAR preferencialmente nos municípios e estados).
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[1] Ver análises críticas ao acordão e Nota do Comitê Florestal a respeito em: http://www.socioambiental.org/nsa/direto/direto_html?codigo=2012-09-03-095535, http://migre.me/aDV1l e http://migre.me/aDV4p
[2] Considerando que o que temos até agora (com a entrada em vigor da Lei Federal 12561/12) já representa um retrocesso histórico sem precedentes, já desfigurou substancialmente os pilares da legislação florestal brasileira (áreas de preservação permanente e reserva legal) e que o retrocesso em vigor somente será revisto por um eventual (e não descabido) questionamento de constitucionalidade no âmbito do STF a análise das perdas e ganhos feita neste artigo se dá na comparação entre a aprovação da MP com a redação original sem alterações, a aprovação do texto do “acordão” e a perda da eficácia da MP.
[3] Ver links na nota 2.
[4] Supostamente sem o aval do Planalto conforme noticia amplamente divulgada na mídia. Veja mais a respeito em: http://migre.me/aDVmX
[5] A regra da MP definia que nos casos de imóveis com mais de 10 MF a APP ciliar será de no mínimo 50% da largura do rio, observado o mínimo de 30 metros. A Redação do acordo suprime o mínimo de 30 metros e delega aos estados a livre definição da metragem total a ser recomposta.
[6] No máximo, essa estratégia resultará em um novo texto intermediário entre a MP571 supostamente defendida pelo Governo e o relatório do “acordão” (costurado por lideres do governo), mas já com muitas concessões que descaracterizaram completamente o código florestal, isso se a base não ruralista do governo (que parece ser minoritária) se empenhar muito na negociação.
[7] a) Proteção do entorno de veredas, b) proteção de vegetação existente no entorno de lagoas naturais com superfície inferior a um hectare, e c) a possibilidade de supressão de vegetação de APP para aquicultura em imóveis com até 15 MF.
[8] Art. 7o A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado.
§ 1o Tendo ocorrido supressão de vegetação situada em Área de Preservação Permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título é obrigado a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos autorizados previstos nesta Lei.
[9] O conceito de área rural consolidada não é auto-aplicável, pois carece de determinação legal explícita indicando detalhadamente as circunstâncias em que ele se aplica como exceção às regras de proteção especial de florestas e vegetação nativa. No caso das APPs essa determinação explícita e detalhada das circunstâncias aplicáveis está redigida no artigo 61 original da Lei 12651/12 e no artigo 61-A da MP 561/12. O conceito de área rural consolidada (art. 3º IV) é “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio”.
[10] Acesso à lista de imóveis com área embargada no site do IBAMA em: http://siscom.ibama.gov.br/geo_sicafi/
*André Lima, advogado, formado pela Universidade de São Paulo, Mestre em Gestão e Política Ambiental pela UnB, Assessor de Políticas Públicas do IPAM, Consultor Jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica, Sócio-fundador do Instituto Democracia e Sustentabilidade, Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto O Direito por um Planeta Verde e Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-DF.
** Publicado originalmente no site Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazònia.