No mês passado, visitei a Argentina como Relatora da ONU para o Direito à Moradia. Certamente, foi uma visita bem diferente das demais que eu já havia feito naquele país como turista ou como professora e urbanista. Com certeza também foi uma experiência muito diferente da que estavam vivenciando inúmeros brasileiros que encontrei pelas ruas de Buenos Aires, obsessivamente ocupados em fazer compras, ouvir tango e beber vinho (não que não sejam coisas ótimas de se fazer por lá).
Como Relatora da ONU, entro por uma espécie de porta dos fundos dos países que visito, que costuma ser o avesso do que mostram os cartões postais e campanhas publicitárias para atrair turistas. Em Buenos Aires, por exemplo, pude conhecer, ainda que rapidamente, um outro lado de Puerto Madero, a mais nova frente de expansão imobiliária da cidade, em pleno centro da cidade.
Puerto Madero é uma antiga área portuária que foi reocupada com escritórios, bares, restaurantes e lofts de luxo. Um turista que vai a um de seus restaurantes não se dá conta da existência, ali bem pertinho, de uma favela (chamada de “villa” pelos argentinos) que existe desde os anos 1980 e que se expandiu com a chegada de operários que construíram os novos empreendimentos da região.
A comunidade em questão chama-se Rodrigo Bueno. As pessoas que lá moram agora lutam para permanecer onde vivem – afinal, são terras públicas – e receber investimentos em infraestrutura, já que ali não há rede de água, nem de esgoto, nem nada que possa ser chamado de urbanidade. Contra sua permanência estão, principalmente, os novos proprietários do terreno vizinho, uma gleba que pertencia ao Clube Boca Juniors (cujo ex-presidente é o atual prefeito de Buenos Aires) e que foi vendida para um dos maiores incorporadores imobiliários da cidade, que ali pretende implantar um condomínio residencial fechado, áreas comerciais e amenidades náuticas. Além disso, há também ambientalistas que consideram o assentamento uma ameaça à reserva ecológica que existe na região.
A operação urbana de Puerto Madero tem semelhanças e diferenças com projetos do mesmo tipo aqui no Brasil. Em São Paulo, na região da Berrini, Marginal Pinheiros e Vila Olímpia, duas grandes operações urbanas – Faria Lima e Águas Espraiadas – promoveram uma grande transformação numa antiga área industrial, onde algumas comunidades, como a do Jardim Edith e a Real Parque, lutaram bravamente para permanecer onde se encontravam.
Tanto em Buenos Aires, quanto em São Paulo, trata-se de transformações urbanísticas implementadas através de parcerias público-privadas, promovidas pelos governos municipais nos anos 1990 e 2000. Nos dois casos, são operações de renovação – com torres de escritórios, restaurantes e empreendimentos de luxo – que geraram processos de altíssima valorização imobiliária. Mas as semelhanças param por aí.
Puerto Madero é uma extensão do próprio centro de Buenos Aires, que nunca foi abandonado por suas elites – como ocorreu em São Paulo – e nunca perdeu sua heterogeneidade de funções: ao mesmo tempo é lugar de moradia e de negócios, de vários grupos sociais. A qualidade urbanística de Buenos Aires sempre foi – e continua sendo – incomparavelmente melhor do que a de São Paulo. Seu centro, incluindo Puerto Madero, é um lugar de pedestres e as calçadas e espaços públicos são a base de sua estrutura urbana.
Além disso, na operação urbana de Puerto Madero, executada por uma corporação pública, a valorização imobiliária que foi gerada ficou em mãos do poder público, que foi leiloando o solo à medida que a operação avançava. Em São Paulo, toda a valorização foi apropriada pelo setor privado, que especulou com os CEPACS (certificado de potencial adicional de construção) que financiaram a operação.
Por outro lado, nas leis que viabilizaram as operações Faria Lima e Águas Espraiadas, as favelas ali existentes foram declaradas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), estabelecendo um compromisso de urbanizá-las e regularizá-las com os recursos das operações. Em Puerto Madero, a favela Rodrigo Bueno, entre outros assentamentos que já existiam na região, foi literalmente ignorada.
É bem verdade que as promessas de urbanização das favelas da região das operações paulistanas não foram cumpridas e nenhuma foi urbanizada até agora com recursos destas operações. As últimas 250 famílias – de um total de 50 mil que ali residiam – continuam resistindo e ganharam, na Justiça, o direito de morar em novas habitações no local.
Buenos Aires e São Paulo; Puerto Madero e Vila Olimpía; Villa Rodrigo Bueno e Favela do Jardim Edith; Boca Juniors e Corinthians; futebol e negócios milionários: de fato, somos muito diferentes e profundamente parecidos.
* Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.
** Publicado originalmente na coluna da autora, no site Yahoo, e retirado de seu blog.