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Brasileiros revisam missão militar de paz no Haiti

Rio de Janeiro, Brasil, 12/9/2011 – Em um momento em que as notícias sobre a missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti ocupam mais os espaços policiais do que internacionais, os brasileiros começam a se perguntar se a primeira experiência como protagonista externo não lhes trouxe mais dissabores do que o prestígio buscado. Ao assumir como ministro da Defesa em 8 de agosto, Celso Amorim disse que entre suas principais diretrizes de ação está “reformular” a participação do Brasil na operação de paz no Haiti. Na época ainda não surgira o escândalo da agressão sexual a um jovem haitiano por fuzileiros uruguaios que integram a missão.

O Brasil comanda a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah) e tem o maior contingente, com 1.280 soldados, seguido do Uruguai com 1.136. “Não pode haver permanência para sempre nem retirada irresponsável” do Haiti, disse Amorim, posição assumida por todos os ministros da Defesa e chanceleres da União Sul-Americana de Nações (Unasul) em sua reunião do dia 9, em Montevidéu, convocada para definir uma estratégia comum nessa área. A Unasul vai propor ao Conselho de Segurança da ONU, que decidirá sobre o assunto em 15 de outubro, a redução gradual dos efetivos até atingir a cifra anterior ao terremoto de janeiro de 2010.

A Minustah passou de nove mil homens para 12.200 após o terremoto, sendo 8.700 soldados e 3.500 policiais, procedentes da América do Sul e de outros 20 países. O Brasil assumiu, com objetivos estratégicos de política externa não de todo explícitos, a tarefa de liderar o contingente militar da missão de paz da ONU para substituir, desde 1º de junho de 2004, a Força Multinacional Provisória no Haiti, em meio a uma explosiva situação social deixada após a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide.

A decisão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011)foi tomada diante da necessidade de “demonstrar a capacidade militar do país em sua campanha por um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU”, segundo o historiador Marcelo Carreiro. “Precisava se mostrar capaz de dar segurança em seu próprio continente”, afirmou este especialista em relações internacionais, segurança e defesa nacionais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em entrevista à IPS, Carreiro acrescentou um motivo interno à decisão de intervir no Haiti, que é o projeto da chefia militar de capacitar suas tropas para atuação em missões de garantia da lei e da ordem, “basicamente transformar as forças de defesa em forças de suporte de segurança interna”. “As condições de operação no Haiti permitiriam o treinamento de tropas em cenários urbanos muito parecidos com os projetados para serem as futuras operações militares no Brasil, ou seja, nas favelas e usando táticas de guerrilha, conhecedores profundos das particularidades do terreno e razoavelmente armados”, afirmou Carreiro.

Por sua vez, William Gonçalves, analista de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, considera que o objetivo era “demonstrar a nova política externa brasileira”, que define como sua “disposição de dar apoio aos vizinhos, especialmente aos mais fracos e sem assistência”. Clovis Brigagão concorda com Carreiro que “foi uma espécie de jogada” em busca de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava mostrar que merecia esse posto, disse à IPS Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas e coordenador do Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais, entre outras funções como especialista em assuntos de paz e segurança internacional.

“O Brasil assumiu o comando militar da missão para demonstrar ao sistema internacional que o país havia mudado sua posição de não intervenção em assuntos de outros Estados” e que agora o fazia por trás do “conceito de solidariedade”, acrescentou Brigagão. Um tipo de intervenção que não convence totalmente muitos e incomoda outros. O caso da agressão ao jovem haitiano pelos uruguaios se soma a outras denúncias de abuso sexual, maus-tratos e excesso de força por parte de soldados da Minustah.

Outro fato que desprestigiou essa força foi a epidemia de cólera que matou cerca de seis mil habitantes do empobrecido Haiti, cujo contágio foi atribuído ao contingente do Nepal. “A presença de tropas brasileiras no Haiti é insustentável. Os militares estão apenas cumprindo o papel de polícia”, disse à IPS o dirigente da organização não governamental Via Camponesa, João Pedro Stédile. “As forças armadas só devem cumprir a missão de cuidar da soberania de seu país”, acrescentou, em uma opinião que reflete a de outros movimentos sociais do Brasil.

O codiretor do não governamental Centro de Pesquisa em Economia e Política dos Estados Unidos (CEPR), Mark Weisbrot, entende que o Brasil estaria, sem querer, fazendo o jogo do governo norte-americano, que considera a força principal por trás da derrubada de Aristide. “Não se deram conta de que Washington agiu no Haiti exatamente como fez na Venezuela em 2002: simplesmente organizaram um golpe de Estado contra um governo eleito”, disse Weisbrot à IPS.

Carreiro questiona a permanência da Minustah depois de já ter cumprido seu objetivo de garantir a segurança mínima na transição para um novo governo. Houve duas eleições, em 2005 e 2011. “Se o objetivo da Minustah era garantir eleições e o desarmamento dos grupos, por que ainda funciona na atual conjuntura?”, pergunta. “A população local, com toda razão, está vendo essa missão cada vez mais como força de ocupação internacional”, acrescentou.

Para este analista, o principal erro da Minustah foi seu “elemento inicial”, pois “Aristide nunca admitiu ter renunciado. A sucessão de episódios que configurou o vazio de poder e a criação de um governo de transição nunca foi totalmente esclarecida. Desse modo, a Minustah pode muito bem estar sustentando um golpe de Estado ou uma interferência externa”, destacou Carreiro.

Por outro lado, Tullo Vigevani, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo, disse que a Minustah não fracassou, mas alcançou “resultados possíveis” em meio a uma “lentíssima reconstrução” econômica e social após o terremoto. Entre outros episódios nesse sentido, menciona a “contenção relativa da crise humanitária e certa restrição à criminalidade”. De todo modo, Vigevani considera que o Haiti “continua sem um Estado, é um não Estado”.

Além das diferentes avaliações sobre a missão, a posição que parece ser unânime é a de que a participação brasileira na Minustah deve acabar do ponto de vista militar e se reforçar por outros canais de cooperação humanitária civil. “O que o governo e o povo do Brasil devem fazer é apoiar projetos de desenvolvimento econômico-social”, disse Stédile. Para Brigagão, “as funções para as quais se decidiu participar da missão no Haiti, no sentido de criar segurança, já estão totalmente asseguradas. O que se deve fazer agora são outras funções não necessariamente militares, mas civis e de desenvolvimento, como criar infraestrutura, construir estradas”.

Gonçalves disse que o sucesso de uma missão depende em grande parte da rapidez com que é executada. Assim, “quando a presença de militares estrangeiros se prolonga, apesar de seu mérito, os problemas começam a aparecer”. Nesse quadro, “e considerando também que em algum momento os haitianos terão de assumir a total responsabilidade pelos destinos de seu país, deve-se considerar que chegou a hora de organizar a retirada, e isso não deve significar que o Brasil deixe de prestar a ajuda que se propôs a dar ao Haiti”, acrescentou. Fora da Minustah, o Brasil também participa de projetos sociais e de desenvolvimento no Haiti, no contexto do que pretende ser outra marca de sua política externa: a cooperação Sul-Sul. Envolverde/IPS

* Colaboração de Elizabeth Whitman (Nações Unidas).