Estava outro dia escrevendo um texto, cujo tema agora não importa mais. E no meio do caminho senti necessidade de uma determinada palavra. De um adjetivo em especial. Precisava daquela palavra e não a encontrava ao meu lado.
Na mente, alguma clareza eu tinha. O conceito mais ou menos delineado. A ideia mais ou menos definida. A mensagem mais ou menos engatilhada. O objetivo mais ou menos objetivado. Vislumbrava a palavra, mas não sabia seu paradeiro.
A palavra desejada estava em alguma praia, muito longe daqui, descansando da vida verbal. Ou estaria passeando em ruas improváveis, em outros países, cometendo estrangeirismos. Ou teria entrado em órbita, perdida no espaço, à beira de universos paralelos.
Bem sabia eu que não haveria sinônimos ou substitutos para aquela palavra. O texto e o contexto não permitiam outra palavra. Certamente encontrara outros autores e a eles se entregara. Negando-se a vir. Fugindo de mim.
Procurei-a em dicionários de papel e eletrônicos. Percorri e vasculhei textos alheios, abrindo parágrafos ao meio para ver se a flagrava ali escondida. A palavra apetecida estava desaparecida. Era preciso caçar mais intensamente a palavra cobiçada. Era tudo ou nada!
Por ela perguntava a quantos encontrei. A linguistas e filólogos, a gramáticos e professores, a leigos e doutores: “onde está a palavra?”.
Queriam descrições mais exatas, indicações mais precisas. Em que linhas estava a palavra quando foi lida pela última vez? Que páginas costumava frequentar nos finais de semana? Era vulgar? Erudita? Esdrúxula? Era uma palavra de honra?
Com quem andava rimando nos últimos tempos? Sabe algo de sua árvore etimológica? Quais sons emitia? Que sujeitos costumava acompanhar? Que predicativos tinha?
Eu media as palavras para responder. Não fosse eu acabar atrapalhando as investigações. Não acabasse por induzir os caçadores a trazerem, viva ou morta, a palavra errada.
Não conseguia mais dormir. O texto, como animal sem dono, me olhava, suplicando continuidade. E a palavra não vinha. O texto, estagnado. Eu, desesperado.
Talvez a tivessem sequestrado e em breve me telefonariam exigindo resgate absurdo. Quanto custa a vida de uma palavra? E se, para me pressionar, os criminosos enviassem fonemas decepados de seu corpo para que eu, encurralado, aceitasse pagar o valor impossível?
Cinco longos dias assim, sem a palavra.
Então, quando tudo parecia perdido, a porta se abriu lentamente.
Ela mesma, capciosa, entrou sem pedir licença.
* Gabriel Perissé é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e escritor. Website: www.perisse.com.br.
** Publicado origianlmente no site Correio da Cidadania.