“Sim, era o único jeito – e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.” Em Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, a velha empregada negra, tão presente no imaginário de gerações de crianças brasileiras, fugia de uma onça lá nos idos de 1933, quando o livro foi publicado. Só que o País mudou. A difusa fronteira entre realidade e ficção, no caso entre um preconceito historicamente arraigado e o campo da literatura, ganhou contornos políticos. E o autor infantil mais popular do Brasil foi levado ao Supremo Tribunal Federal.
Julgado pelo suposto racismo de sua obra, Lobato pode ser condenado a ter publicada com ela um mea culpa, uma espécie de ressalva histórica. Na pior das hipóteses, ela pode ser retirada do Programa Nacional Biblioteca da Escola, que distribui milhões de livros a escolas públicas. Por trás da discussão literária, o que surge são as vísceras de uma questão bem mais profunda: como o País está disposto a lidar com seu racismo, não só o que se traduz no abismo socioeconômico entre negros e brancos, mas também um tipo mais delicado, aquele do plano simbólico da literatura e outros objetos culturais produzidos antes das conquistas de direitos humanos e que voltam a assombrar um país que se jacta de sua suposta democracia racial.
Morto em 1948, há dois anos o autor virou foco de uma disputa inédita, cuja envergadura ideológica soa incomum à sociedade brasileira. Caçadas de Pedrinho, usado em duas ocasiões pelo PNBE, teve sua distribuição ameaçada em 2010 por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que, em resposta à ouvidora da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), recomendava que o livro com teor racista não fosse selecionado – e, caso o fosse, que contivesse uma ressalva. O motivo: racismo. O governo aceitou exigir uma nota que discutisse “a presença de estereótipos raciais” e oferecesse contextualização histórica. Mas o Instituto de Advocacia Racial (Iara) e o técnico em gestão educacional Antonio da Costa Neto acharam insuficiente e entraram com um mandado de segurança para exigir a preparação dos professores da rede pública. O caso parou no STF. Convocados pelo ministro Luiz Fux, as partes se reuniram, sem consenso. Outra reunião está marcada para a terça-feira 25. Caso não haja acordo, o processo pode ir ao plenário do STF.
Passado e futuro se chocam no debate. Quando Lobato escreveu seus livros infantis, a escravidão tinha sido abolida havia 50 anos. Os ex-escravos eram marginalizados por uma segregação informal que só foi amortecida lentamente, tanto que é visível hoje nas favelas do Rio, na periferia de Salvador, nas filas de desempregados País afora, assim como no modo como negros são retratados nas novelas e encarados pelo sistema policial e judiciário. Perto de 50,7% da população se declarou preta ou parda ao Censo de 2010. Mas se eles são metade do País, estão bem atrás em termos de oportunidade. Segundo um estudo do Ipea que comparou os indicadores sociais de negros e brancos no Brasil, entre 1995 e 2005, há um abismo racial socioeconômico. Um negro ganha em média metade do salário de um branco com mesmo grau de instrução. Entre os negros, a taxa de analfabetismo acima de 15 anos é até três vezes maior. Outros dados trazem um retrato igualmente cru dessa realidade. Os negros são 65% dos presos. Um adolescente negro tem quatro vezes mais risco de ser assassinado do que um branco e três vezes menos chance de chegar ao ensino superior. A distância tem diminuído, é verdade. Mas se as taxas persistirem, os negros alcançarão o nível de pobreza dos brancos em meio século.
Os negros também têm menos chances de se fazer ouvir, mesmo quando se trata do preconceito de cor. A cada 17 denúncias de racismo, apenas uma vira ação penal no Brasil, segundo constatou o pesquisador Ivair Augusto dos Santos em sua tese de doutorado, que virou o livro Direitos Humanos e as Práticas de Racismo. Para Santos, o racismo brasileiro é institucionalizado. “É no atendimento de saúde, na abordagem policial, no mercado de trabalho que o negro sofre o racismo. No Brasil, o racismo é difícil de detectar.” Quando criança, aluno de uma escola pública da zona leste de São Paulo, Santos recebeu da professora o livro de Lobato para ler. Ficou chocado com a Tia Nastácia retratada como “macaca de carvão” e com a displicência da professora em relação ao tema. “A reação que a gente tem é de vergonha. Os meus filhos não vão ler esse livro.”