Assunção, Paraguai, 2/5/2011 – Eleita para a enorme tarefa de tornar visível a violência contra crianças e adolescentes em todo o mundo, a advogada portuguesa Marta Santos Pais, de 58 anos, trabalha com uma pequena estrutura de apenas sete pessoas em Nova York. Para compensar estas deficiências, ela conta não apenas com seu evidente compromisso pessoal como, também, incorpora cada vez mais aliados entre as próprias crianças, chamadas a participarem de um grande processo de mudança, que lhes permita crescer sem sofrer violência.
Com mais de 25 anos de experiência neste tema, Marta trabalhou para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), e desde 2009 é Representante Especial sobre Violência contra a Infância da Organização das Nações Unidas, posto com status de assistente do secretário-geral, Ban Ki-moon. Marta participou ativamente dos diferentes fóruns do Encontro Sul-Americano de Acompanhamento para Estudo das Nações Unidas sobre Violência contra Meninos, Meninas e Adolescentes, que terminou no dia 30 de abril na capital paraguaia.
O encontro de dois dias reuniu delegados governamentais da América do Sul, representantes de organizações da sociedade civil e mais de 60 crianças e adolescentes, bem como especialistas internacionais em temas de infância. Em entrevista à IPS antes de regressar a Nova York, Marta revelou que entre 500 milhões e 1,5 bilhão de crianças sofrem, anualmente, diferentes tipos de violência, e que os principais agressores são familiares, professores e outras pessoas encarregadas de sua proteção.
IPS: Desde quando a ONU tem uma representante especial para a violência contra as crianças?
MARTA SANTOS PAIS: A decisão das Nações Unidas foi adotada em 2007 e concretizada em 2009. O cargo foi criado para garantir um acompanhamento concreto e sistemático do Informe Mundial sobre Violência contra Meninos e Meninas, apresentado à Assembleia Geral em 2006.
IPS: Por que foi considerada necessária a criação desse cargo?
MSP: A verdadeira razão é que foram criadas as condições para reconhecer que o assunto necessita de atenção específica e merece apoio e uma plataforma das Nações Unidas para garantir o trabalho sobre estes temas. Até esse momento, a violência contra as crianças não era uma prioridade. Porém, após o estudo mundial, se transformou em um imperativo.
IPS: Em quanto é estimado o número de crianças afetadas pela violência em suas diferentes formas?
MSP: Não há dados precisos, mas considerando as pesquisas que nos chegam de diversos países, há entre 500 milhões e 1,5 bilhão de crianças que sofrem algum tipo de violência a cada ano. O Unicef realizou, há pouco, um estudo revelando que mais de 75% das crianças entre dois e 14 anos sofriam alguma forma de violência, física ou psicológica.
IPS: E qual tipo é mais frequente?
MSP: Não temos em separado, mas de acordo com as pesquisas que recebemos, o drama está no fato de, na maioria das vezes, a violência ser cometida por pessoas muito próximas às crianças, pessoas nas quais elas confiam enormemente. Isto ocorre na escola, em instituições de proteção e acolhida, e na família.
IPS: E o que ocorre com as crianças envolvidas em conflitos armados?
MSP: Existe outro mandato que cuida especificamente da violência contra as crianças nessas situações específicas. Contudo, colaboramos muito estreitamente com eles para evitar que as situações de violência possam se transformar em conflitos armados e para a consolidação da paz.
IPS: Qual experiência destacaria como boa prática para enfrentar a violência na infância?
MSP: Uma prática que está crescendo e é de grande importância é a participação de crianças e adolescentes. Porque é muito difícil falar de sua realidade tentando adivinhar quais são as formas de violência que sofrem, em qual contexto ocorrem, como se sentem, quanto os afeta. Ao ouvi-los, um dos dados mais importantes que vemos é que as crianças são vítimas da violência, mas também têm uma capacidade de resiliência extraordinária, e um grande reconhecimento de seu papel como fatores fundamentais para construir uma sociedade diferente. Neste encontro sul-americano, foi admirável ver como refletem, como olham possíveis soluções nas escolas, nas famílias, em centros de acolhida. Penso que essa foi a mais importante contribuição desse encontro. Entretanto, em muitos países e muitas sociedades ainda não se reconhece o papel protagonista que merecem. Devemos criar estes espaços para que as crianças participem como aliados deste processo.
IPS: Por que acredita que sejam tão poucos os países que proíbem por lei o castigo físico às crianças?
MSP: Porque a maioria continua considerando o castigo físico como parte da autoridade dos pais, parte da disciplina e educação das crianças. Esta é uma percepção errada que está muito arraigada em nossas sociedades. E, quando alguns líderes de governo ou da sociedade civil propõem uma mudança legislativa, isto faz com que encontrem muita resistência. De todo modo, desde que foi divulgado o informe mundial até agora, passou de 16 para 29 o número de países que proíbem por lei estes castigos, e pelo menos outros 20 estão finalizando o processo de aprovação destas leis.
IPS: E a lei é suficiente?
MSP: Vejo com muita esperança esse processo. Mas também reconheço que a legislação que não é aplicada, que não é conhecida, não produzirá mudanças. Temos de acompanhar este processo com informação pública, educação, distribuição de dados, para que a lei seja um instrumento para a mudança de atitudes e não um documento muito bonito que não influi na realidade.
IPS: A lei deve punir os agressores?
MSP: Há diferentes soluções nos diversos países. Alguns preveem a proibição em nível constitucional, outros em leis sobre deveres dos pais. Mas há países como Portugal onde o castigo físico consta do Código Penal. Envolverde/IPS