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Centro-americanos LGBTI se defendem de estigmas e abusos

Daniela Alfaro, estudante de educação para a saúde, na entrada da Faculdade de Medicina da Universidade de El Salvador. Essa jovem trans denunciou, sem sucesso, as agressões e o assédio de que é vítima nesse centro educacional da capital do país. Foto: Edgardo Ayala/IPS
Daniela Alfaro, estudante de educação para a saúde, na entrada da Faculdade de Medicina da Universidade de El Salvador. Essa jovem trans denunciou, sem sucesso, as agressões e o assédio de que é vítima nesse centro educacional da capital do país. Foto: Edgardo Ayala/IPS

 

São Salvador, El Salvador, 11/2/2015 – Apesar das agressões e dos abusos sofridos na universidade por ser mulher trans, a salvadorenha Daniela Alfaro não vacila em sua meta de se formar em educação para a saúde. “Falta muita tolerância na universidade em relação a nós. Pensei que seria diferente na faculdade, mas não”, disse à IPS esta estudante do terceiro ano do curso na Faculdade de Medicina da Universidade de El Salvador, na capital do país.

Rejeitada pelo resto de sua família, Alfaro só tem o apoio emocional e financeiro de sua mãe. “A única que não me virou o rosto”, contou. Como ela, muitas pessoas da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transgênero e intersex (LGBTI) sofrem a cada dia, na América Central, vexames por terem uma condição sexual ou uma identidade de gênero diferente, afirmaram ativistas de El Salvador, Guatemala e Nicarágua, entrevistados pela IPS.

Os assédios, as discriminações e agressões recebidas na universidade por Alfaro partem de seus próprios companheiros de estudo, professores, trabalhadores e autoridades universitárias. Ela fez várias denúncias desde 2010 junto às autoridades por agressões sofridas no banheiro masculino da faculdade, o qual deve utilizar. “Mas não levam a sério minhas denúncias porque sou trans”, lamentou a jovem de 27 anos.

Alfaro experimentou o fenômeno da invisibilidade das pessoas LGBTI, que ocorre quando não há resposta das instituições ou dos funcionários porque desprezam denúncias simplesmente por causa do preconceito em relação aos que não são heterossexuais, afirmou Carlos Valdés, da Organização Lambda, da Guatemala.

“Não existimos para o Estado em questões de saúde, estudo, trabalho ou âmbito social, e não há protocolos de atenção do servidor público em relação a nós”, afirmou Valdés à IPS por telefone desde Cidade da Guatemala. A Lambda e outras três organizações do istmo impulsionam o programa regional América Central Diferente, que busca fazer valer o cumprimento dos direitos humanos para pessoas com orientações sexuais ou expressões de gênero diversas.

“Definitivamente, queremos melhorar a qualidade de vida da comunidade LGBTI, que não seja discriminada por setores e instituições do governo, pontuou Eduardo Vásquez, da salvadorenha Associação Entreamigos, que participa da iniciativa.

O programa começou em maio de 2014 e se prolongará até junho de 2016 nos quatro países participantes: Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador. Com financiamento da União Europeia, o programa pretende chegar a 40 organizações, mais de 200 defensores dos direitos humanos, 3.550 pessoas LGBTI, 160 comunicadores, 600 funcionários públicos, oito mil adolescentes e 10% da população dos quatro países.

Entre suas ações, o programa dá apoio legal para ter acesso à justiça em casos de abuso e violência, capacitação para ativistas dos direitos da diversidade sexual, junto com campanhas nacionais e regionais contra a homofobia. Esses ativistas coordenam as operações com instituições governamentais, que fornecem serviços públicos à comunidade LGBTI, e vigiam para que não ocorram abusos ou discriminações, por exemplo em centros saúde, de educação e no trabalho, ou nos procedimentos policiais.

“Com tristeza vemos que o pessoal da polícia ainda pratica maus procedimentos em revistas, ou na forma desrespeitosa com se referem a um gay ou trans”, disse à IPS por telefone Norman Gutiérrez, do Centro para a Educação e Prevenção da Aids, da Nicarágua, outra organização participante da iniciativa.

O programa também criará um observatório regional de direitos humanos LGBTI, que permitirá monitorar os casos de abusos, agressões e violência contra o coletivo, e fará um estudo para diagnosticar o nível de violações dos direitos humanos pela condição sexual.

Esses dois instrumentos serão essenciais para detectar o quanto é sério, por exemplo, o fenômeno dos assassinatos, sobretudo de pessoas trans, já que as estatísticas oficiais não reconhecem os crimes de ódio e os rotulam como homicídios, afirmaram os ativistas. “Na Guatemala o direito à vida está entre os mais violentados, muito focado nas pessoas trans”, destacou Valdés.

Diante da falta de estatísticas oficiais, as organizações vão recopilando informação sem a adequada sistematização. Com base nela, as organizações que participam do programa afirmam que nos últimos cinco anos foram cometidos na América Central pelo menos 300 assassinatos contra pessoas LGBTI, sobretudo mulheres trans. Esses crimes de ódio ocorrem em contexto de violência generalizada na região.

O chamado Triângulo do Norte, formado por Guatemala, Honduras e El Salvador, está entre as regiões mais violentas do mundo.

Honduras mantém nos últimos anos índices de homicídios em torno de 70 para cada cem mil habitantes, segundo o Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime, bem acima do já alto nível médio latino-americano de 29/100 mil. Nesse país, os ativistas LGBTI denunciam ao menos 190 assassinatos por ódio nos últimos cinco anos e alguns deles são incluídos em um informe divulgado no dia 17 de dezembro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Desse documento constam violações dos direitos humanos da comunidade LGBTI em 25 países membros da Organização dos Estados Americanos, entre janeiro de 2013 e março de 2014. Nesse período foram assassinadas pelo menos 594 pessoas que eram LGBTI ou vistas como tal, enquanto outras 176 foram vítimas de grave violência física.

A OEA “exorta os Estados a tomarem medidas urgentes e efetivas de prevenção e resposta diante dessas violações de direitos humanos e garantir que as pessoas LGBTI possam gozar efetivamente de seu direito a uma vida livre de violência e discriminação”. Entre os casos recopilados pela CIDH está o assassinato a pedradas de uma mulher hondurenha trans, identificada como José Natanael Ramos, de 35 anos, ocorrido no dia 4 de março de 2013 na cidade de San Pedro Sula, no norte do país.

Ao contrário de outros programas que operam sobretudo nas capitais nacionais, o programa América Central Diferente busca chegar aos povoados e às pequenas cidades, onde as agressões e a falta de defesa são mais graves. “Nas pequenas cidades há muito mais machismo, mais violência e mais homofobia. Há assassinato sou crimes de ódio que nem chegam a ser denunciados”, acrescentou Gutiérrez.

Também no âmbito trabalhista continua havendo forte discriminação contra a população LGBTI centro-americana, disse o guatemalteco Valdés. “Por exemplo, os gays têm de esconder sua identidade ao optarem por um trabalho, e se sua orientação sexual é descoberta começa o assédio até que se demita”, acrescentou.

Apesar de tudo, Alfaro reafirmou diante da Faculdade de Medicina onde estuda que não cessará suas denúncias das agressões que recebe, até que em algum momento consiga justiça. “Só espero que algum dia respeitem minha identidade como mulher”, enfatizou. Envolverde/IPS