Miami, Estados Unidos, maio/2011 – A atenção dedicada à submersão do cadáver de Bin Laden, quanto ao respeito aos ritos muçulmanos e se foi violado o costume ancestral de um sepultamento tradicional, é verdadeiramente digna de meditação. Contudo, esta consideração de procedimento funerário e forense foi superada pela polêmica gerada pela conveniência ou desvantagem de proporcionar material gráfico que reforce as declarações das autoridades dos Estados Unidos quanto ao fim efetivo do líder da Al Qaeda.
Enterrada (ou submersa, segundo a visão) nas páginas dos jornais ficou a morte (um dia antes) do escritor argentino Ernesto Sábato, do qual uma função nada literária é conveniente trazer à tona agora. Trata-se de sua direção da Comissão Nacional de Desaparecidos (Conadep) criada pelo presidente argentino Raúl Alfonsin em 1983 para esclarecer os detalhes fundamentais da repressão militar do final da década de 1970. “Nunca Mais”, o documento apresentado em 1984, continua sendo um dos documentos mais estremecedores da crueldade humana e da barbárie liberada pelos regimes com ânsias de assassinato sistemático e organizado. A variedade de métodos para torturar e matar seres indefesos somente foi superada em seu momento pela estratégia nazista de executar o holocausto.
Sábato teve que ouvir declarações de sobreviventes e familiares que, uma vez recolhidas em um volume, provocam tanta náusea e tristeza quanto o golpe desferido em 11 de Setembro. Enquanto se reclama piedade respeitosa por dispor dos despojos de Bin Laden, e se duvide da conveniência de fornecer documentação gráfica dos resultados de seu assassinato no Paquistão, é recomendável, à beira do vômito, reler a descrição de uma das especiais submersões cometidas pelos militares argentinos. A diferença não está no grau de crueldade, mas no fato de a liquidação de Bin Laden ter sido de um cadáver. Na Argentina, as submersões eram realizadas com seres vivos lançados ao mar.
O informe dirigido por Sábato é contundente. Como evidência, que não se sabe bem se algum dia se reproduzirá no caso de Bin Laden, ficaram “os corpos que as correntes marítimas levaram para a costa”. O roteiro começava assim: “Eram levados para a enfermaria do porão, onde os esperava um enfermeiro que lhes aplicava uma injeção (Penthotal) para adormecê-los, mas que não os matava. Assim, vivos, eram retirados pela porta lateral do porão e colocados em um caminhão. Bem adormecidos eram levados ao Aeroparque, colocados em um avião que voava para o Sul, mar adentro, onde eram lançados vivos”. Muitos cadáveres apareceram depois “em diferentes praias… a água salobra e a voracidade dos peixes haviam desfigurado quase todos”. Os atestados de óbito não identificam os mortos.
Retornando ao drama dos Estados Unidos, Obama acreditava ter encerrado o expediente para as exigências de apresentar seu certificado de nascimento em território norte-americano, diante das más intenções de Donald Trump e do Tea Party. Agora, ainda sofre a pressão para apresentar um atestado de óbito com a prova irrefutável de algumas fotos do cadáver de Bin Laden. Depende da futura evolução do caso sua imagem se fortalecer ou esfumaçar.
A lógica de uma maioria pensante de norte-americanos, predominantemente de seu eleitorado natural, aconselhava deixar o assunto com o anúncio, sem mostrar uma documentação que seria impactante, por mais que os maquiadores se esforcem e se utilize o Photoshop. É o que ainda se pensa no Departamento de Defesa e na CIA. Sobretudo, na decisão de não ir além do anúncio deve ter pesado também o escritório de Hillary Clinton. Como exceção com certo toque feminino, tapava o rosto na foto de família de toda a assessoria de Obama quando contemplavam ao vivo e online a operação de ataque à mansão do terrorista.
Agora, porém, Obama ainda sofre pressões de outro setor notável (e certa esquerda), que continuará exigindo a confirmação dos meios de comunicação e com humor negro. Se Obama tivesse sucumbido, teria revelado que não se sentia seguro e tentaria aplacar as forças que lhe deram apoio antes e depois de sua primeira opção. Porém, o maior risco ainda está em um vídeo ou uma foto clandestina aparecer no You Tube, como ocorreu com a execução de Saddam Hussein.
No exterior, a maior parte dos governos europeus se declarara satisfeita com a decisão de “não mostrar”, já que sofreriam as consequências de um renovado terrorismo. No mundo muçulmano, a revelação de documentos gráficos poderia prejudicar o movimento “laico” das revoluções e dos protestos. Assim, do ponto de vista do interesse nacional e da política externa, dar o assunto por encerrado sem certificado visual foi o mais aconselhável. E os submersos-desaparecidos da ditadura argentina continuam igual: sem fotos ou vídeos. E em todo este panorama de mortes e desaparecimentos ainda resta a questão da tortura aplicada em Guantânamo. A mais eficaz é chamada de “water boarding”, um afogamento simulado. O preço da morte de Bin Laden continua sendo alto. Bem sabem os familiares dos milhares das Torres Gêmeas que foram submersos em vida no pó do desmoronamento. Envolverde/IPS
* Joaquín Roy é diretor do Centro da União Europeia da Universidade de Miami. ([email protected]).