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Cessar-fogo longe de ser concludente no Sudão do Sul

Duas mães e seus filhos olham para a costa após chegarem de barco a Mingkaman, Sudão do Sul. Em menos de um mês, cerca de 84 mil pessoas fugiram dos combates em Bor cruzando o rio Nilo. Foto: Mackenzie Knowles-Coursin/IPS
Duas mães e seus filhos olham para a costa após chegarem de barco a Mingkaman, Sudão do Sul. Em menos de um mês, cerca de 84 mil pessoas fugiram dos combates em Bor cruzando o rio Nilo. Foto: Mackenzie Knowles-Coursin/IPS

 

Adis Abeba, Etiópia, 28/1/2014 – Quando representantes das facções em luta no Sudão do Sul se reuniram, no dia 23, em um hotel de luxo em Adis Abeba, na Etiópia, para assinar um acordo de cessar-fogo, houve fervorosos aplausos e vivas entre os presentes. O fim das hostilidades exigiu que ambas as partes entregassem as armas no prazo de 24 horas. Contudo, na noite do dia 24, aproximadamente na mesma hora em que deveria começar a vigorar a trégua, o brigadeiro-general Lul Ruai Koang, porta-voz do exército opositor, declarou à IPS que a situação estava longe de ser calma.

“Estamos lutando em quase todas as partes”, afirmou, referindo-se em particular aos enfrentamentos ocorridos nas localidades de Dnagdok e Duar, no Estado de Unidad, em Dolieb Hill, no Estado do Alto Nilo, e em Mathiang, no Estado de Jonglei. “O governo violou o cessar-fogo antes que começasse. Temos direito de nos defender com todos os meios que temos à nossa disposição”, afirmou Koang.

No dia 25, o porta-voz militar do governo, Philip Aguer, informou que ainda aconteciam ataques. “Os grupos rebeldes estão nos atacando. Não estamos vendo um cessar-fogo do outro lado”, indicou à IPS, acrescentando que houve enfrentamentos ao norte de Bor, capital de Jonglei, e ao sul de Malakal, capital do Alto Nilo. “Estamos comprometidos com a trégua e continuaremos observando-a, mas também mantemos a defesa. É direito de todos atuar em defesa própria”, ressaltou.

As rivalidades políticas e as tensões étnicas ameaçam há tempos a estabilidade no Sudão do Sul, mas o conflito atual começou em 15 de dezembro, quando a animosidade entre o presidente Salva Kiir e seu vice, Riek Machar – destituído em julho – geraram um enfrentamento dentro de um quartel militar em Juba. O efeito dominó foi devastador. As divisões entre os dois maiores grupos étnicos do país (dinka, do qual Kiir é membro, e nuer, amplamente leais a Machar) dispararam um ciclo cada vez pior de ataques em represálias, assassinatos, violações e saques.

As conversações em Adis Abeba foram lentas e estiveram pautadas primeiro por questões protocolares – chegar a um acordo nos termos de referência e determinar a agenda – e depois por viagens de mediadores ao Sudão do Sul. O diálogo contou com a mediação da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (Igad), um bloco de países da África oriental. O enviado da Igad, Seyoum Mesfin, ex-chanceler da Etiópia, disse durante a cerimônia que a assinatura foi uma “ocasião auspiciosa”, mas alertou que “alguns acordos só podem proporcionar um adiamento temporário antes que a violência volte a aumentar”.

O acordo final está longe de ser concludente. A oposição não conseguiu garantir uma concessão fundamental de suas contrapartes: a libertação de 11 pessoas que estão detidas pelo governo sob acusações de tentativa de golpe de Estado. Entre os prisioneiros há vários ex-funcionários de alto escalão, cuja participação foi crucial para a independência do Sudão do Sul em 2011, incluído o ex-secretário-geral do Movimento de Libertação do Povo do Sudão (SPLM), Pagan Amum.

“Afirmamos que aos políticos do nosso lado foi estendida uma armadilha, são prisioneiros políticos. Se estivessem livres, isso anularia o argumento do governo de que se trata de algo entre os nuer e os dinka”, disse à IPS o delegado da oposição Mabior Garang, filho do falecido herói da independência, John Garang. “Esse é um levante do povo do Sudão do Sul. Uma vez libertadas essas pessoas, se mostrará o verdadeiro caráter nacional do levante”, acrescentou.

Representantes da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Europeia e dos Estados Unidos pediram urgência a Kiir na libertação dos prisioneiros como gesto de boa vontade. Mas os delegados do governo passaram o assunto ao Ministério da Justiça do Sudão do Sul, dizendo que os detidos serão submetidos ao devido processo.

O acordo diz que o Igad e seus sócios “estão firmemente comprometidos em assumir todos os esforços para acelerar a libertação dos presos”, mas não inclui nenhum compromisso similar do governo sul-sudanês. Agora as negociações estão interrompidas por duas semanas, período após o qual as partes voltarão a se reunir para discutir os assuntos mais espinhosos: os presos, os mecanismos de longo prazo para monitorar o cessar-fogo e uma reconciliação política sustentável.

Enquanto segue o processo, centenas de milhares de pessoas no Sudão do Sul são vítimas de uma grave crise humanitária. Porém, veem as conversações com certo otimismo, opinou à IPS oo ativista Edmund Yakani, diretor da Organização de Empoderamento Comunitário para o Progresso, uma entidade da sociedade civil em Juba.

“Há esperanças de que o acordo freie o confronto militar, e de que um cessar-fogo gere diálogo. Mas os cidadãos têm algumas dúvidas cruciais. Se preocupam com a questão da representação, isto é, se essas negociações representam apenas as pessoas que estão no poder, que não entendem os desafios reais que a população do país enfrenta”, ponderou Yakani. Uma falta de conexão entre os delegados e seus compatriotas no terreno deixará sem efeito o cessar-fogo.

Durante e cerimônia de assinatura do documento, Nhial Deng Nhial, que liderou a delegação do governo em nome de Kiir, expressou dúvidas sobre a capacidade da oposição para controlar os combates. “O que realmente nos preocupa em relação ao acordo de cessar-fogo é a capacidade do grupo rebelde, pois a maior parte é integrada por civis que não estão submetidos à disciplina militar”, pontuou Nhial. “É possível que uma ordem de interromper a luta não seja obedecida, e isto, sem dúvida, deixará o acordo em situação ridícula”, advertiu.

Koang argumentou que o governo é em grande parte culpado pelos enfrentamentos do dia 24, embora os conflitos que citou tenham ocorrido antes do início programado para o cessar-fogo. “O governo está na ofensiva, tenta nos obrigar a retroceder”, afirmou. Perguntado sobre se a oposição ficaria apenas em uma posição defensiva, o porta-voz respondeu que dependeria da situação. “Às vezes, quando se é atacado, se resiste e se ganha impulso, e para manter o impulso às vezes é necessário repelir”, explicou.

Entretanto, alguns afirmam que uma paz duradoura exigirá que as facções do Sudão do Sul cheguem mais fundo nas causas da crise atual. “Penso que funcionará se abordarem a questão da criação do Estado”, enfatizou Yakani, acrescentando que o Sudão do Sul sofreu sob um sistema unipartidário que coloca a condição étnica acima da democracia. “As instituições políticas se baseiam em antecedentes étnicos, e isso compromete a responsabilidade e a transparência. Esses conflitos são sintomas de um sistema no qual a condição étnica se politizou”, afirmou.

Outra questão é a presença de tropas de Uganda no Sudão do Sul, onde combatem em nome do governo. Delegados da oposição em Adis Abeba cobraram a saída dessas forças, mas o acordo da semana passada não faz nenhuma referência direta à sua presença. Koang alertou no dia 25 que os soldados ugandenses ainda estavam ativos do lado governamental. Envolverde/IPS