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China protagoniza a migração digital no Quênia

A presença chinesa na transição digital do Quênia gera preocupação. Foto: Miriam Gathigah/IPS
A presença chinesa na transição digital do Quênia gera preocupação. Foto: Miriam Gathigah/IPS

 

Nairóbi, Quênia, 16/1/2014 – Controvérsia e confusão marcam a transição para a televisão digital no Quênia, que deverá ser completada em 2015, segundo o prazo estabelecido pela União Internacional de Telecomunicações (UIT). Até o ano que vem, deve cessar toda transmissão de sinal analógico. A migração digital, destinada a dar aos consumidores de conteúdo mais opções e melhor qualidade de serviço, enfrenta vários obstáculos nesta nação da África oriental.

O governo já adiou em várias ocasiões o switch over, ou “apagão tecnológico” (passagem definitiva do sistema analógico para o digital). A justiça analisa uma queixa apresentada por três grandes meios de comunicação locais contra a negativa do governo em lhes dar licença para adotar a tecnologia digital, enquanto cresce a preocupação de que empresários chineses estejam dominando o processo de transição.

Javas Bigambo, analista da consultoria de mídia, política e governança Interthoughts Consulting, disse à IPS que não é coincidência uma empresa chinesa ter recebido uma licença, enquanto esta é negada a meios locais que possuem infraestrutura adequada. “Ainda nem deixamos para trás o espanto pelo polêmico projeto de Lei de Meios, que inclui severas penas a jornalistas e empresas de comunicação, e o governo agora está leiloando a liberdade de imprensa”, afirmou.

Os canais locais se limitarão a produzir conteúdos, enquanto as emissoras Pan-África Network Group’s (Pang), de propriedade chinesa, e Signet, subsidiária da estatal Kenyan Broadscating Corporation, servirão de intermediários entre essas estações e os consumidores. Ambas cadeias se encarregarão de todas as transmissões, a um custo acordado com cada canal local.

Alex Gakuru, presidente da Associação de Consumidores de TIC (Tecnologias da Comunicação e da Informação) do Quênia e membro do Comitê de Transição Digital, grupo de tarefas multissetorial criado pelo governo, reconhece que há temores pelo crescente domínio chinês. Gakuru explicou que, como a China reprime seus meios de comunicação locais, “existe o medo de no futuro ignorar nossa Constituição, nossas leis e nosso sistema judicial”, mas insistiu em que esses temores são infundados.

“A preservação das comunicações públicas é o mandato legal e único da Autoridade de Meios e Comunicações, pelo qual é ilógico concluir que todas as companhias estrangeiras vão ignorar as leis locais”, pontuou Gakuru. Também afirmou que a “Pang e a Signet estão obrigadas por lei a serem neutras, sem direito de discriminar nem priorizar conteúdos”, por seu papel de distribuidores exclusivos do sinal digital. O descumprimento desta norma pode ser punido com revogação da licença.

Contudo, Gakuru também ressaltou que um único distribuidor de sinal seria suficiente e mais barato, como ocorre na Austrália. “Dois distribuidores de sinal são desnecessários e significam desperdício de recursos. Três ou mais só agravariam a situação, se isso é tecnicamente factível”, acrescentou.

Grace Githaiga, da não governamental Rede de Ação pelas TIC no Quênia, reconhece que, segundo a Comissão de Comunicações do Quênia, autoridade regulatória independente, os meios locais perderam em um processo de licitação justo. Porém, esses “têm razões para estarem preocupados pelo controle estrangeiro da migração digital, no sentido de que estamos hipotecando nossos direitos”, disse à IPS. “A comissão afirma que aconselhou os meios locais a formarem um consórcio e se candidatar, o que fizeram, e perderam. Mas parece que não há nenhuma ação afirmativa em apoio às entidades locais”, observou.

Por outro lado, Gakuru insistiu que “o medo dos chineses” é um exagero, e destacou que, por exemplo, “os operadores de telefone celular usam tecnologia chinesa. Milhões de telefones, entre outros artigos eletrônicos, são fabricados ou têm componentes produzidos na China, incluindo os iPhone, iPad e outros produtos Apple”, ressaltou. Estatísticas do governo queniano indicam que a agência de notícias estatal chinesa, Xinhua, transmite boletins de notícias para 17 milhões de telefones celulares no Quênia.

Os temores aumentaram sobretudo pelo fato de que, embora a política oficial queniana sobre as TIC proíba companhias estrangeiras de operarem infraestrutura de telecomunicações, essas disposições foram suspensas durante o processo de licitação. Segundo o governo a suspensão foi adotada sob a condição de as firmas estrangeiras se comprometerem a ceder 20% de suas ações a empresários locais, dentro dos primeiros três anos de operações. Gakuru opinou que a questão entre os meios locais e o governo é, na realidade, sobre margem de lucro, e não sobre liberdade de imprensa.

“As novas emissoras se beneficiarão de publicidade, antes desfrutada por uns poucos. O gasto total publicitário em 2011 foi de US$ 769 milhões. Os canais de televisão locais antes tinham liberdade para difundir qualquer conteúdo rentável que desejassem”, explicou Gakuru. “Devemos reconhecer a China como superpotência. Seu domínio sobre a migração digital no Quênia é uma manifestação de suas mais amplas TIC”, destacou.

Para Gakuru, a situação atual dos meios no Quênia, onde uns poucos têm o privilégio de distribuir o sinal aos mesmos poucos, não é um exemplo de liberdade de imprensa. Segundo afirmou, opor-se à licença concedida à Pang será “uma tarefa morro acima”. E acrescentou que “ganharam uma licitação pública e aberta, e não há necessidade de insinuar favoritismo ou corrupção, e muito menos que os meios de comunicação serão amordaçados”.

Entretanto, Githaiga destacou que “é preciso entender o papel dos distribuidores de sinal” – Pang e Signet. “Os distribuidores têm autorização para editar os conteúdos dos provedores? Pode apagar o sinal se o conteúdo for considerado danoso ou contrário ao governo? Isto deve ficar claro”, enfatizou. Envolverde/IPS