O Senado Federal vai votar nos próximos dias um projeto que pode mudar de forma definitiva o mapa florestal brasileiro, em função de interesses que em mais de um ano de discussões na Câmara e, agora, no Senado, não ficam claros para a maioria da sociedade. De um lado se alinham ambientalistas, cientistas e pesquisadores de diversas instituições, além de 80% da população, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha. De outro, os dois relatores do projeto, o ex-deputado e agora ministro dos Esportes, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), o atual relator no Senado, senador Luiz Henrique Silveira (PMDB-SC), e um grupo de ruralistas aquartelados na Confederação Nacional da Agricultura sob o comando da senadora Katia Abreu, recém-aderente ao PSD de Gilberto Kassab.
Rebelo passou todo o tempo em que foi responsável pelo projeto de lei do novo Código Florestal na Câmara tentando desqualificar seus opositores, colocando todos em um balaio de detratores da pátria, gente a serviço do imperialismo internacional que não deseja ver o desenvolvimento do Brasil. Ignorou as contribuições oferecidas pela ciência por meio de documentos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Associação Brasileira de Ciência (ABC), além de estudos desenvolvidos pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Para José Goldemberg, físico, ex-ministro e ex-reitor da Universidade de São Paulo, o projeto que caminha a passos largos para ser aprovado no Senado ignora uma das linhas de conduta básicas da ciência, o princípio da precaução. “No caso de florestas, decisões equivocadas podem implicar sua destruição, o que poderá ter consequências irreversíveis que afetarão não só a atual geração, mas também gerações futuras. Neste caso, é essencial adotar o Princípio da Precaução, que foi incorporado à Convenção do Clima adotada na Conferência do Rio, em 1992, e ratificada pelo Congresso Nacional”, explica Goldemberg em recente artigo.
E ele não está sozinho. Campanhas realizadas em mídias sociais e internet mostram alguns dos mais importantes cientistas e intelectuais brasileiros pedindo por precaução nas mudanças ao Código Florestal, que uma vez implantadas vão se refletir na perda de grandes áreas, além de transformar cidadãos respeitadores da lei, que mantiveram intactas em suas propriedades as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais, em verdadeiros otários. Pois outros, que trabalharam à margem da lei, cortando a mata em lugar de preservá-la, serão beneficiados. Em recente campanha pelo site de vídeos YouTube, personalidades como os economistas José Eli da Veiga e Ricardo Abramovay se manifestaram contrários às mudanças, juntamente com inúmeros cientistas, pesquisadores, artistas e militantes ambientais. E brotam posts sobre o tema, em sua maioria contra o novo projeto, em todas as chamadas mídias sociais.
Em estudo realizado pelo Ipea e disponível em seu site, os pesquisadores procuraram calcular a área de reserva legal que deixará de ser recuperada em caso de aprovação do projeto de lei. A partir desse cálculo, foram estimados os impactos que essa perda representaria para os compromissos brasileiros de redução de emissões de carbono (CO2) assumidos internacionalmente. Por esse estudo o Brasil deveria ter 258,2 milhões de hectares de Reserva Legal, mas apenas 98,9 milhões têm efetivamente a floresta preservada. O passivo total é de 159,3 milhões de hectares que já foram ilegalmente desmatados. O estudo também alerta para a impossibilidade de o Brasil cumprir os compromissos de redução de emissões de gases-estufa, que a então chefe da Casa Civil e hoje presidenta, Dilma Rousseff, assumiu publicamente na conferência do clima realizada no final de 2009 em Copenhague, na Dinamarca.
Entre os argumentos usados pelo ex-deputado e atual ministro para mutilar o Código Florestal em vigor, está o fato de que ele foi aprovado em 1965, durante a ditadura militar. Esta é apenas uma meia verdade, pois o Código não veio de uma canetada de generais, mas sim de planos de desenvolvimento que vinham sendo trabalhados muito antes, na mesma lógica da construção de Brasília. Era, e ainda é, uma lei que regula a interiorização dos brasileiros e impõe limites à ganância daqueles que trabalham apenas com uma visão de lucro no curto prazo. Predadores que se apropriam dos recursos naturais, os exaurem e seguem em frente.
Outro ponto levantado pelos defensores da liberação das regras de preservação florestal é que esse tipo de legislação em defesa das florestas não existiria em nenhum outro lugar. “É uma lei jabuticaba”, dizem em referência à fruta exclusiva do Brasil. Este argumento foi desmontado por um estudo realizado pelo Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), em uma pesquisa realizada em parceria com a The Proforest Initiative, organização ligada à universidade inglesa de Oxford, que mostra que a proteção das florestas está longe de ser uma “jabuticaba”, não é uma invenção brasileira. A pesquisa, coordenada pelo pesquisador Adalberto Veríssimo, um dos mais respeitados estudiosos da Amazônia, aponta que países como Alemanha, França, China, Índia, Indonésia, Japão e até os Estados Unidos têm leis específicas para a proteção das florestas. No caso norte-americano, por exemplo, no âmbito federal, a conversão de áreas intactas de Florestas Naturais é proibida pela Lei Florestal Nacional (National Forest Roadless Area Conservation Act.12). O manejo de florestas em terras privadas é geralmente controlado na esfera estadual e varia entre os Estados norte-americanos. O texto “Um resumo do status da floresta em países selecionados” está disponível no site do Imazom.
Entre os ambientalistas que estão na linha de frente da militância contra as alterações do Código Florestal existe a certeza de que as mudanças propostas resultarão em um expressivo aumento no desmatamento no Brasil. Vale lembrar que entre os países do mundo que mais emitem gases de efeito estufa (CO2), o Brasil ocupa o décimo-quarto lugar se o desmatamento ficar fora da conta. Mas a conta não é essa quando se inclui o desmatamento, e assim pulamos para o quarto lugar. Mario Mantovani, diretor de mobilização da organização SOS Mata Atlântica, que trabalha com o tema desde os anos 1970, acredita que ainda é possível reverter o quadro no Senado e derrubar as alterações que estão sendo propostas. As principais são: isenção de obrigatoriedade de Reserva Legal para propriedades de até quatro módulos fiscais, redução das Áreas de Preservação Permanente ao redor de rios, nascentes e cursos d’água e liberação do uso de encostas e topos de morro para a produção agrícola. Parece pouco, mas os cientistas alertam para enormes impactos em preservação da qualidade da água e na manutenção da biodiversidade, fauna e flora que precisam dessas áreas para manterem seus refúgios de vida. “Me param na rua e perguntam se não podemos fazer alguma coisa contra isso”, diz Mantovani, que praticamente mudou de São Paulo para Brasília para realizar um trabalho cotidiano de convencimento dos parlamentares.
Nos próximos dias e semanas o Senado vai votar para decidir o modelo de desenvolvimento que deseja para o país, se baseado na contínua predação de recursos naturais ou com a inclusão e participação de pesquisadores e cientistas na busca de mais produtividade e da incorporação de enormes territórios já desmatados, exauridos e abandonados em todos os biomas brasileiros.
* Dal Marcondes é jornalista, diretor da Envolverde, passou por diversas redações da grande mídia paulista, como Agência Estado, Gazeta Mercantil, revistas Isto É e Exame. Desde 1998, dedica-se à cobertura de temas relacionados a meio ambiente, educação, desenvolvimento sustentável e responsabilidade socioambiental empresarial. Recebeu por duas vezes o Prêmio Ethos de Jornalismo e é reconhecido como um Jornalista Amigo da Infância pela agência Andi.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.