O Brasil é um país curioso: mesmo possuindo uma das mais avançadas legislações para o direito à saúde no mundo, este direito não existe de fato como uma totalidade (ou em caráter universal) senão por meio de experiências descontínuas e incompletas que não constituem o que o jargão da saúde coletiva chama de “rede”. Este fato pode ser evidenciado subjetivamente no mal-estar vivenciado pelo conjunto da população que usa plenamente o SUS (e não de modo seletivo, como faz 25% dos brasileiros); ou objetivamente, ao se constatar que os principais indicadores de saúde brasileiros estão abaixo da média da América Latina.
Mais curioso ainda foi o que se fez com uma bandeira histórica do movimento de defesa do direito à saúde: a Câmara dos Deputados, dominada pela coalizão do governo Dilma, aprovou uma regulamentação da Emenda Constitucional 29 (EC-29), criada em 2000 para aumentar os recursos para a saúde, que conseguiu reduzir (!) as verbas para a saúde. O movimento social honesto, em especial aquele com relações mais próximas ao governo, está perplexo. Mas não deveria. A “regulamentação realmente existente” da EC-29 não é um raio em céu azul; é, antes de tudo, o corolário de um governo que se pauta, em primeiro lugar, pela defesa intransigente da ordem capitalista dependente brasileira – isto é, da defesa dos interesses do grande capital (em especial do rentismo) em detrimento do bem-estar do conjunto da nação.
Não se pode, portanto, apenas responsabilizar a Câmara ou apostar todas as fichas na votação do Senado. Nem é preciso lembrar que a casa dirigida por José Sarney não tem grandes vocações para democracia no sentido lato. Os próprios líderes do governo (Romero Jucá) e do PT (Humberto Costa) na casa admitem que a regulamentação desejada pelo movimento social (10% da receita corrente bruta) “é inviável”. Conclui-se que a “regulamentação realmente existente” da EC-29 é a cara da política brasileira atual: mesquinha, injusta, hipócrita e profundamente antidemocrática (se entendemos democracia como um conjunto de direitos garantidos aos cidadãos de um país, e não o mero rito eleitoral). É preciso compreender os fundamentos deste caráter tão restrito da ordem política brasileira, onde não cabe o direito à saúde.
Sub-financiamento dos direitos sociais e o modelo de dependência externa
O fato de ser o Sistema Único de Saúde subfinanciado é admitido mesmo por todos os partidos e agrupamentos da ordem brasileira; existe um entendimento de que o Brasil deveria gastar pelo menos 7% do seu PIB com o SUS (o atual patamar é de cerca de 3,5%). O que o bloco dominante da política brasileira (desde a coalizão do governo Dilma até a minoria tucana) jamais coloca em questão é que, em conjunto, é impossível financiar a totalidade dos direitos sociais dentro dos estreitos limites do nosso capitalismo dependente.
Para dizer de maneira objetiva: os 10% do PIB (R$ 367 bilhões) reivindicados pela educação, os pelo menos 7% do PIB para a saúde (R$ 257 bilhões), outros tantos para a reforma agrária, mais uma bolada para a reforma urbana, superam em muito os atuais 12% (Carga Tributária Líquida, R$ 441 bilhões) que “sobram” para financiar os direitos sociais. Esta “sobra” significa um terço dos cerca de 35% da carga tributária bruta (R$ 1,28 trilhão), isto é, do conjunto dos impostos arrecadados pela Nação. Qualquer pessoa que cuide das contas de casa perguntaria: onde está o restante?
A maior parte destes recursos é utilizada para pagar a dívida pública brasileira. Em 2010, R$ 635 bilhões (17% do PIB) foram gastos apenas com pagamento da dívida da União, exatamente o montante reivindicado pelos movimentos sociais de saúde e educação juntas.
Nunca é demais repetir que o caráter sacrossanto do pagamento da dívida pública é o principal nexo da dependência do Brasil em relação ao grande capital; ou seja, é a expressão do principal entrave à construção de uma ordem social justa, na qual a legitimidade desta dívida seria posta em xeque com uma auditoria bem conduzida. Qualquer governo comprometido radicalmente com a classe trabalhadora e o povo pobre enfrentaria essa questão (como de fato fez o governo equatoriano).
Sendo assim, o fato de que os governos petistas (Lula e Dilma) tenham se constituído no principal fiador de nossa subordinação às vontades do grande capital neste início de século causa, e ainda causará, estranheza nos movimentos sociais, pois possuem a aparência de governos promotores do bem-estar social. Esta aparência, porém, cai por terra no exato momento de concretizar as condições fundamentais para a implantação das políticas sociais universalistas tão necessárias ao Brasil.
O caso da saúde, assim, jamais pode ser visto de forma isolada. O fato de a regulamentação da EC-29 não atender aos requisitos mínimos do financiamento do SUS deve ser compreendido dentro do compromisso da coalizão governista (e também da oposição de direita, PSDB-DEM-PPS-PV) com os fundamentos da política econômica: ajuste fiscal e utilização dos recursos públicos para o pagamento da “dívida”.
Sem compreender este mecanismo, o movimento social se torna refém da chantagem governista, que condiciona a regulamentação da EC-29 à criação de mais um imposto, a Contribuição Social para a Saúde (CSS). Esse debate é uma tática do governo para desviar a atenção da essência do problema, que é: enquanto o Brasil mantiver seus compromissos com o grande capital, expresso, em especial, pelo pagamento religioso da dívida pública, o financiamento do conjunto dos direitos sociais não será resolvido.
A estrutura tributária brasileira e a CSS
Mesmo assim, vale a pena entrar brevemente no debate da estrutura tributária na qual a CSS seria “contra-hegemônica”. Um excelente estudo para se aprofundar na natureza da estrutura tributária brasileira é o documento “Sistema Tributário: diagnóstico e elementos para mudanças”, do Sindifisco Nacional.
Para efeitos deste texto, basta resgatar do documento alguns dados: o Brasil tem uma carga tributária semelhante à de países ricos (os 35% do PIB já citados), inclusive países campeões no quesito bem-estar social, como o Canadá. Porém, ao contrário de tais países, os impostos arrecadados incidem muito mais sobre os mais pobres (na forma de impostos cumulativos sobre o consumo, por exemplo). Assim, a carga tributária é instrumento de concentração de renda, ao tirar mais dos mais pobres, agravada ainda pela principal destinação dada a ela: o já citado pagamento da dívida pública.
Neste sentido, é de se desconfiar da criação de mais um imposto (cujo caráter supostamente progressivo é posto em dúvida pelo fato de que milhões de brasileiros pobres que vivem na informalidade estarão ainda sujeitos a ele) sem a transformação profunda da carga tributária brasileira no sentido de um sistema mais justo. Ainda mais quando a proposta vem de um governo que no início deste ano promoveu cortes no orçamento social. Nada garante que o governo Dilma não faça como FHC, que desviou os recursos da CPMF da saúde.
Ainda assim, se novos impostos fossem criados, eles deveriam incidir diretamente sobre o grande capital (e não sobre uma parcela significativa dos assalariados, inclusive a chamada “nova classe média”, conforme prevê a CSS). Há um projeto na Câmara que prevê a taxação de grandes fortunas, e mesmo a taxação de remessa de lucros ao exterior. Mas eles não são postos em prática porque tanto a coalizão governista como a oposição de direita não têm como se esquivar de seus compromissos com o grande capital.
Lutar pelo SUS é lutar pelo seu caráter 100% público e estatal e pela ruptura com o atual modelo político e econômico
A despeito das atuais (e importantes) mobilizações pela regulamentação da EC-29, os movimentos sociais combativos não podem esquecer que existe um conjunto de ataques articulados ao SUS. Desde a recém-criada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que privatiza os Hospitais Universitários Federais brasileiros, passando pela dupla-porta dos hospitais paulistas e pelas Parcerias Público-Privadas de São Paulo à Bahia, chegando à aprovação da lei de Organizações Sociais no Rio de Janeiro. A privatização da gestão e do atendimento, que inclui a entrada da “nova classe média” no mercado de planos de saúde, é a política hegemônica de todas as frações do bloco que domina a política brasileira, independente de sua coloração partidária.
Dissociar a luta pelo financiamento do SUS 100% público e estatal abre um precedente perigoso: mesmo se a EC-29 fosse aprovada nos moldes defendidos pelo movimento, no contexto de um SUS dominado por organismos privados (ainda que com verniz “estatal”, como a maioria das Fundações), esta aprofundaria uma das vulnerabilidades do SUS, que é o financiamento do setor privado pelo público. Onde se constata que a luta pela real implementação do SUS passa, igualmente, pela defesa deste contra os interesses privados na saúde e pela garantia de financiamento público ao conjunto de todos os direitos sociais.
Finalmente, superar a pulverização das lutas dentro da saúde e dentro dos movimentos sociais requer a compreensão de que o combate à atual ordem política e econômica é requisito fundamental para romper com as amarras que separam o povo brasileiro de suas maiores aspirações e enfrentar o bloco da ordem (polarizado por PT e PSDB), principal guardião político destas amarras.
Pode ser óbvio, mas há que se ressaltar que grandes problemas exigem grandes soluções. O financiamento dos direitos sociais não se concretiza sem enfrentar as grandes questões nacionais, que, por sinal, estão totalmente interligadas. A questão do financiamento dos direitos sociais exige a auditoria imediata da dívida pública, que é barrada sistematicamente pelo bloco da ordem.
Por isso, urge fazer oposição consequente, mas decidida, aos governos que retiram direitos, privatizam os serviços públicos, implementam medidas antissociais, cooptam e/ou reprimem os movimentos sociais e avançam na destruição do meio ambiente. A articulação desta totalidade de lutas será mais um passo na retomada dos ideais da Reforma Sanitária, que compreendia que a questão da saúde só pode ser resolvida com profundas mudanças em nossa sociedade extremamente desigual.
* Felipe Monte Cardoso é médico de família e comunidade, e diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp.
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.