Com projeto de formação crítica, Ginásios Vocacionais foram extintos pela ditadura

No meio de uma calorosa conversa vem uma pergunta: “Quais os fatores que determinaram o subdesenvolvimento do Brasil?”.

Aula de práticas agrícolas no Ginásio de Americana.

Não foi preciso tempo para as respostas: “Deficiência de assistência social e alto crescimento demográfico”. “Fome e dependência política estrangeira”. “Desemprego como consequência da monocultura latifundiária”. “Falta de aproveitamento dos recursos naturais”. “Desequilíbrio econômico entre indústria e agricultura e más condições de trabalho”.

As hipóteses não foram levantadas em uma universidade ou em um instituto de pesquisa. Elas foram pensadas nos bancos de uma escola, por estudantes ginasiais – atual ensino fundamental II.

Registrado no documentário Vocacional, uma Aventura Humana, o debate ocorreu em um dos seis Ginásios Vocacionais do Estado de São Paulo, que funcionaram nas cidades de Americana, Batatais, Barretos, Rio Claro e São Caetano do Sul, entre 1962 e 1969, até serem extintos pela ditadura militar, que os considerou subversivos.

“Muita gente acha que o termo vocacional está realcionado à profissão, mas não é. Esse nome foi escolhido porque o sistema visava a formar homens livres, críticos e criativos, de modo que ele pudesse arquitetar sua vocação ontológica de ser humano”, conta a ex-diretora do Ginásio de Americana, Aurea Cândida Sigrist de Toledo Piza.

O ex-aluno Luiz Carlos Marques, ou Luigy, como é conhecido pelos colegas do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, de São Paulo, comprova: “Minha emancipação intelectual se deu no Vocacional e não na universidade. O que me valeu muito lá foi o que aprendi quando criança”.

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Como funcionava?

Com o currículo todo pautado em Estudos Sociais, as aulas não eram divididas em disciplinas, mas em áreas do conhecimento. “Estudávamos psicologia, sociologia, antropologia, história e geografia e tudo girava em torno dessas discussões”, lembra Luigy, que hoje é diretor da Associação dos Ex-Alunos e Amigos do Vocacional (GVive). “Meninos e meninas estudavam juntos, o que era um grande avanço para a época. Tínhamos meninas líderes de classes e meninos aprendendo a trocar fraudas nas aulas de educação doméstica.”

Nos quatro anos de permanência no vocacional, o foco dos estudos era dividido, sendo no primeiro o Município, no segundo o Estado de São Paulo, no terceiro o Brasil, e no quarto o mundo. A professora Aurea explica que, assim, trabalhava a partir de unidades pedagógicas em círculos concêntricos. “As áreas de estudos sociais colocavam um problema ligado à realidade e todas as demais áreas trabalhavam esse tema.”

A partir daí os alunos faziam estudos supervisionados, individuais, livres e em equipe. Deles saíam sínteses, que eram avaliadas e debatidas em assembleia, até que se chegasse a uma única, mais completa. “Os alunos perguntavam, recebiam críticas dos colegas e assim aprendiam a argumentar, a se colocar e a respeitar o outro”, explica Aurea.

Também haviam os chamados estudos do meio ou pesquisas de campo, como lembra Luigy. “Fazíamos passeios nos bairros da cidade levantando o que tinha lá. Catalogávamos cinemas, teatros e até zonas de prostituição”, lembra. “Algumas equipes chegaram a ir para a Bolívia e para o Peru.”

Parte do dinheiro para os trabalhos de campo do Ginásio Vocacional de São Paulo vinha da cantina da escola, que era gerida pelos próprios alunos. Organizados em equipes, eles assumiam periodicamente a limpeza, o atendimento, o troco e o balanço final da cantina. Parte do lucro era divido igualmente entre os alunos, depositados na conta do banco escolar, que cada um possuía.

“Fazíamos tudo em equipe. Professores e alunos almoçavam juntos, jogavam bola juntos”, lembra Luygi. “Quando alguém fazia algo errado era realizada uma assembleia para que todos decidissem o que seria feito com o responsável”.

Ser aceito em um dos vocacionais não era simples. Os candidatos passavam por entrevistas com pais e alunos, além de estarem sujeitos a disponibilidade de vaga. “Se 15% dos moradores da região fossem da classe A, teríamos 15% dos alunos da classe A. Se 30% dos moradores fossem de classe E, 30% dos alunos também seriam”, explica Aurea. “As classes heterogêneas ajudavam a amadurecer”.

As avaliações eram bimestrais. Elas não eram feitas por notas, mas sim por conceitos e, principalmente, pela autoavaliação. “As notas estabelecem métodos muito rígidos. Com os conceitos tínhamos cinco faixas: superior, acima da média, médio, abaixo da média e inferior”, lembra Aurea.

Como começou?

Ex-alunos dos Ginásios Vocacionais, reunidos 40 anos depois da formatura.

As bases para a experiência dos Ginásios Vocacionais, que a princípio seria expandida para toda a rede estadual de São Paulo, começaram em 1959. “Havia uma proposta de reforma do então ensino médio, que passaria a se chamar Ensino Industrial, para os homens, e Educação Doméstica para as mulheres”, conta o doutor em educação Daniel Chiozzini, que pesquisou o vocacional no mestrado e doutorado. “Nesse projeto havia quatro artigos sobre a criação de Ginásios Vocacionais, que seriam uma transição da educação básica para o novo sistema”, explica.

Paralelo a isso, o Ministério da Educação e Cultura aprovou uma portaria que permitia a criação de classes experimentais, nas quais novas propostas pedagógicas seriam postas em prática. “As classes experimentais de Socorro, em particular, começaram a conceber uma nova proposta pedagógica, a partir das ideias de uma professora, chamada Maria Nilde Mascellani”, diz Chiozzini.

Em 1961, o então secretário da Educação de São Paulo, Luciano de Carvalho, gostou da experiência de Socorro. “Ele quis expandir o modelo e inseriu um apêndice na legislação de reforma do secundário, que criou o Serviço de Ensino Vocacional (SEV), sob responsabilidade da professora Maria Nilde”, explica o especialista.

“O SEV garantia uma autonomia administrativa muito grande na gestão das novas escolas. A proposta era levar os alunos ao engajamento e transformação do meio”, conta Chiozzini. “Todo esse processo foi muito influenciado pelo intenso movimento intelectual dos anos 1960”.

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Por que acabou?

Com o passar do tempo, o sistema de ensino começou a sofrer crises internas e externas. “Havia diferenças e embates na experimentação. No auge da crise, a professora Maria Nilde demitiu muita gente”, conta Chiozzini. “A gota d’água foi em Americana, onde um grupo de professores foi demitido e dois deles denunciaram o Vocacional para o Exército, alegando que formava comunistas.”

Em junho de 1969, com a denúncia do professor Francisco Cid, de Artes Industriais, o diário oficial publicou a ameaça de destituição das professoras Maria Nilde e Aurea. Ela se lembra do episódio: “A Maria Nilde foi à delegacia e o general responsável tentou convencê-la a assinar alguma coisa dizendo que eu era comunista ou rolaria a cabeça dela. E ela disse: ‘Então rola a minha cabeça’”, lembra em entrevista ao documentário Vocacional, uma Aventura Humana.

No dia seguinte, o Diário Oficial publicou a destituição de Maria Nilde. Depois desse episódio, todos os Ginásios foram fechados. Em São Paulo, o Exército invadiu a escola. “Os professores foram presos na cozinha”, conta Chiozzini. “Houve muitos atos de pais e alunos pedindo para o governo voltar atrás.” Isso não aconteceu e em 1970 todas as escolas já funcionavam no sistema convencional.

“Eu tive muita dificuldade de encontrar uma escola para os meus filhos. Moro em São Paulo, mas optei por mandá-los estudar em Cotia (SP), na escola de dois professores que foram do Vocacional”, conta Luigy. “Sempre me pergunto por que meus filhos e netos não puderam passar por uma experiência como essa.”

Na análise do especialista Chiozzini, apesar dos problemas, o sistema de ensino fazia jus a todos os elogios. “O Vocacional tinha problemas e se tivesse durado mais tempo poderíamos analisar e criticar melhor, mas não podemos condenar nada. Era uma proposta transformadora, que marcou muito a vida dos estudantes.”

* Publicado originalmente no Portal Aprendiz.