A Agência Internacional de Energia (IAE) acredita que 27% do combustível consumido no mundo em 2050 será proveniente dos chamados biocombustíveis. Atualmente este número não ultrapassa os 2%.
Este anúncio da IAE coincide com a realização em Washington da Conferência Anual sobre a Terra e a Pobreza, organizada pelo Banco Mundial. O evento reuniu aproximadamente 200 empresários do setor agrícola e financeiro para o estabelecimento de normas para aquisição de terras, em larga escala, de forma responsável nos países em desenvolvimento. Antecedendo o encontro, durante o mês de março de 2011, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) organizou uma consulta para regulamentar os princípios defendidos em Washington.
Em resumo, o Banco Mundial defende que os investimentos para a compra de grandes extensões de terras devem ser “transparentes, ambientalmente saudáveis e voltados para o fortalecimento da segurança alimentar”. Todavia, estas recomendações, notadamente em seu aspecto relativo à segurança alimentar, precisam de uma urgente revisão tendo em vista a elevação dos preços dos alimentos, associado à crescente ocupação de terras férteis para o plantio de grãos destinados a fabricação de biocombustíveis.
O quadro é preocupante. A monocultura decorrente do projeto para ampliação dos biocombustíveis somada à desvalorização do dólar e ao aumento da especulação com as commodities de alimentos contribuem para a elevação dos preços, colocando em risco a segurança alimentar dos países do terceiro mundo. Diga-se de passagem, este fato é reconhecido pelos principais financiadores do projeto, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Assim, em 2008, um relatório do FMI atribuía, a elevação no preço da soja em 40%, à sua utilização como matéria-prima para o biodiesel, enquanto nos Estados Unidos o economista-chefe do Departamento de Agricultura, diante do Comitê Conjunto do Congresso que investigava as causas do aumento nos preços dos alimentos, atribuía diretamente à utilização do milho e da soja na fabricação de biocombustíveis como principal causa da elevação dos preços.
Estudos de diferentes institutos de pesquisa detectam a elevação nos preços dos alimentos de forma mais evidente a partir de 2002, apresentando a China uma importante contribuição para este quadro, aumentando naquele ano o uso da soja na fabricação de biocombustíveis, tendo por base o uso da soja. A inflação nos alimentos chineses levou o governo a decretar, em 2006, uma moratória no desenvolvimento de novas usinas de fabricação do óleo de soja para compor o biodiesel.
Todavia, a política de segurança energética da China depende, assim como a dos Estados Unidos e União Europeia, do controle da maior quantidade possível de áreas produtoras de petróleo e terras férteis para o plantio de grãos, para garantir uma variedade de combustíveis. Quanto à alimentação, a soja representa uma importante fonte de proteínas para os chineses e, após a moratória interna, a produção nacional é suficiente para alimentar metade da população.
A ocupação de terras para o plantio repete, nesta primeira década do século 21, a mesma corrida das empresas petrolíferas do século passado em busca do controle de regiões com potencial produtivo. A reunião do Banco Mundial em Washington revelou, em função do número de participantes, o preocupante nível de concentração do setor de biocombustíveis e o poder destas empresas em determinar as políticas de ocupação da terra. Estes oligopólios possuem a experiência das maiores petrolíferas, como Brittish Petroleum, Shell, agora com seus emblemas na cor verde associados às controladoras de sementes e tecnologia de plantio Cargill, Monsanto, etc.
O capital chinês também participa da divisão global dos biocombustíveis com o conglomerado Chongquing Wanzhou Grain and Oils Group. A prática do capital chinês, todavia, apresenta-se diferenciada relativamente ao oligopólio europeu e estadunidense por não priorizar a compra direta de terras, mas contribui de modo decisivo na implantação de práticas coloniais, pautadas na expulsão dos pequenos e médios proprietários de suas terras para introdução da monocultura de soja.
Em alguns países do terceiro mundo, este avanço estrangeiro em terras cultiváveis gerou reações oficiais. No Brasil, por exemplo, o presidente Lula chegou a delimitar a quantidade máxima a ser controlada por empresas estrangeiras, inexistindo, entretanto, um consenso no interior do governo, propondo o ministro Wagner Rossi uma flexibilização desta medida.
Independentemente da opinião do senhor ministro da Agricultura, percebe-se, no caso brasileiro, a elaboração de uma política para exportação de matéria-prima – notadamente as energéticas –, considerando-se os recentes acordos com os Estados Unidos e China, visando ao comércio de petróleo e, no caso do último, também óleo de soja, conforme explicado, matéria-prima dos biocombustíveis.
O ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil, Aloizio Mercadante, ilustra com perfeição o aprofundamento do comércio ao estilo colonial com a China, afirmando ao site french.china.com, durante recente viagem da presidente Dilma Rousseff: “A maior vantagem da economia brasileira é que somos ricos em recursos naturais. Nossas fazendas ainda estão produzindo muito”. O ministro Mercadante, incrivelmente ocupando o cargo encarregado do desenvolvimento da tecnologia nacional, quebrava deste modo o tom oficial de “equilíbrio nas relações comerciais” entre os dois membros do Bric, revelando que, apesar da fala “enérgica” da senhora presidente, estava ali para negociar um aumento na exportação de matéria-prima.
A tecnologia em questão ficou por conta dos chineses, que devem instalar no Estado da Bahia uma fábrica de óleo de soja pertencente ao grupo Wanzhou Grain and Oils. A moratória na produção interna na China será compensada conforme a explicação do prefeito de Chongquing, Huang Qifan, responsável pelo controle do grupo empresarial citado: “Teremos (na Bahia) 70% das ações, e os brasileiros o restante. Assim teremos 200.000 mil hectares de terras disponíveis, o que significa que podemos arrecadar mais de 130.000 hectares por ano”.
Não é preciso comprar terras, basta uma política oficial de incentivo à monocultura para manter a tradição colonial.
* Wladmir Coelho é mestre em Direito, historiador e membro do Conselho Curador da Fundação Brasileira de Direito Econômico.
** Publicado originalmente pelo Diário da Liberdade e retirado do site Correio da Cidadania.