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Começa a Copa da Fifa e o espetáculo é o campeão

Os torcedores do Flamengo durante um jogo amistoso com a seleção da Itália às vésperas da abertura do Mundial da Fifa. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Os torcedores do Flamengo durante um jogo amistoso com a seleção da Itália às vésperas da abertura do Mundial da Fifa. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Rio de Janeiro, Brasil, 13/6/2014 – O menino de sete anos se aborreceu depois de cinco minutos correndo sem direção definida, em meio a uma dúzia de companheiros. Deixou o campo indignado porque não conseguira chutar a bola uma única vez. “O futebol é assim, é preciso ter paciência”, tentou explicar-lhe o professor de educação física que tentava iniciar os alunos do colégio em vários esportes. Não parece a melhor virtude para a prática esportiva.

Como, então, explicar a paixão que desperta o futebol em regiões e culturas das mais variadas do mundo? Por que a Copa do Mundo, aberta ontem, atrai tanto entusiasmo em todos os continentes?

O ex-jogador Romário de Souza Faria, cujos cinco gols no Mundial de 1994 nos Estados Unidos garantiram a conquista do título pelo Brasil, ficava pouquíssimo tempo com a bola nos pés em cada jogo de 90 minutos. Se tornou herói nacional com suas finalizações, em frações de segundo. Em 2007, quando tentava o milésimo gol de sua carreira, um repórter registrou que Romário teve a bola nos pés por apenas 16 segundos durante toda uma partida. Em certo momento completou 30 minutos sem tocá-la.

Os escassos gols, além de partidas sem nenhum, são entediantes para muitos que preferem o aparente dinamismo do basquetebol ou do voleibol. Para outros, algumas regras do futebol são irracionais: o impedimento interrompe a disputa em seu clímax, quando o atacante está em condições ideais para cumprir sua missão e levar a torcida ao delírio.

Há quem rejeite esse esporte por ser muito violento. São muitos ferimentos, fraturas e contusões provocadas por choques, pontapés ou cotoveladas, em alguns casos não sendo punidos nem mesmo com marcação de falta. Tudo ao contrário do voleibol que evita o contato físico.

Apesar de tudo, o futebol conquistou maiorias esmagadoras em grande parte do mundo e tende a se expandir, superando preferências e resistências tradicionais, como já ocorreu nos Estados Unidos e no Japão. Ainda não se pode afirmar que seja uma atração universal, porque falta conquistar multidões relevantes em alguns grandes países, especialmente China e Índia, onde o desafio é seduzir centenas de milhões de possíveis torcedores.

O segredo da superioridade do futebol em popularidade, e, por fim, em negócios, não parece estar nos gramados, nos jogadores ou na bola, mas na cabeça dos torcedores. É como espetáculo, mais do que uma prática esportiva, que se tornou campeão. Muitos esportes, principalmente os coletivos, puderam atrair público em massa, presenciais ou telespectadores.

É o caso do beisebol nos Estados Unidos e no Japão, do basquetebol em muitos países, do críquete na Índia, na Austrália e em outras ex-colônias britânicas. Mas o futebol tem particularidades que o tornam o esporte mais popular, capaz de atrair a atenção de 3,6 bilhões de pessoas durante a vigésima Copa do Mundo, disputadas em 12 cidades brasileiras.

Meninos, um deles usando uma camiseta da seleção brasileira, na rua onde nasceu o craque e agora deputado federal Romário, em Jacarezinho, bairro pobre do Rio de Janeiro. Os três estão certos de que o Brasil vencerá a Copa da Fifa. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Meninos, um deles usando uma camiseta da seleção brasileira, na rua onde nasceu o craque e agora deputado federal Romário, em Jacarezinho, bairro pobre do Rio de Janeiro. Os três estão certos de que o Brasil vencerá a Copa da Fifa. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Um elemento fundamental é fazer com que o torcedor se sinta forte, apoiando sua equipe ou analisando mentalmente as jogadas e seus executores. Mais do que espectador, trata-se de um ator e autor de alternativas que a partida poderia ter, porque o futebol é uma obra aberta, um estímulo à criatividade. Seu apoio coletivo costuma influir nos resultados mais do que qualquer outro esporte.

Sua visão de jogo é superior à dos jogadores, alcança todo o campo e todos os movimentos, em contraste com o olhar dos protagonistas, limitada em amplitude e turvada pelo assédio dos adversários. Costuma-se dizer que todo brasileiro se considera um técnico, mas isto reflete uma realidade.

Os torcedores desenvolvem suas conclusões sobre táticas, jogadas, melhor uso e combinação de características dos jogadores, uma infinidade de detalhes que podem ser decisivos. As discussões são intermináveis, bem como as informações sobre o futebol. Não há jornalismo tão exaustivo e possivelmente tão consumido como o referente a esse esporte.

Há duas décadas o ex-presidente da Fifa, João Havelange (1974-1998), ao ser perguntado sobre a possibilidade de extinguir a regra do impedimento, se mostrou contrário porque a “imperfeição” do futebol é um dos fatores de sua popularidade, ao promover as polêmicas. Em sua extrema complexidade o futebol permite que qualquer um se sinta especialista ou com inteligência suficiente para fazer sua avaliação, ter suas proporias ideias sobre as partidas, as equipes, os jogadores e árbitros.

O fato de ser praticado basicamente com os pés, contrariando a evolução humana que concentrou suas habilidades nas mãos, lhe acrescenta incertezas que aproximam o futebol da teoria do caos. Fatores secundários podem ser decisivos, todos os atores contam e, outro valor essencial, é um jogo de equipe.

As melhores equipes tendem a triunfar mais vezes, mas todo rei tem seus dias de plebeu, não há invencíveis. Por tudo isto, o apoio dos torcedores influi mais do que em outros esportes, fato reconhecido em muitos torneios, em que um gol no campo adversário vale mais do que o marcado em seu próprio estádio.

A frequência com que o fortuito se impõe acaba estimulando tanto a torcida quanto a prática do futebol. Qualquer “perna de pau”, por menos oportunidade que tenha, pode em algum momento protagonizar um gol, uma boa jogada. Como na loteria, essa esperança ou fé move atletas e torcedores.

O sucesso do futebol, como espetáculo, cresce a cada Copa do Mundo e se reflete nos mais de 18 mil jornalistas credenciados para esta edição e em outros milhares que cobrirão os jogos no Brasil sem a credencial oficial da Fifa. A consequência é a sua mercantilização, segundo opinião de setores brasileiros que rechaçam as concessões feitas pelo governo brasileiro à Fifa para poder sediar o Mundial, incluindo investimentos em estádios, aeroportos e infraestrutura urbana que somaram cerca de US$ 12 bilhões.

O herói de 1994 e agora deputado federal Romário, do Partido Socialista, disse em janeiro que a Fifa “é o verdadeiro presidente do país” até o final da Copa. O Brasil se fez “escravo” de uma instituição “100% corrupta”, acusou em várias ocasiões.

As suspeitas se intensificaram na última semana, depois que a imprensa britânica denunciou corrupção na escolha do Catar como sede do Mundial de 2022, com pagamento de propinas a dirigentes com influência no Comitê Executivo da Fifa. Quais critérios esportivos ou de mercado justificariam tal escolha? Esta pergunta está no ar desde ontem, quando começou o maior espetáculo esportivo do mundo. Envolverde/IPS