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Comemoração islâmica se confunde com festejos políticos

Residentes de Trípoli misturaram comemorações do Eid com festa política. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Trípoli, Líbia, 2/9/2011 – As comemorações do Eid, festividade islâmica que marca o fim do mês sagrado de jejum do Ramadã, se misturaram ontem, na Líbia, com o aniversário da chegada ao poder do coronel Muammar Gadafi, há 42 anos. “Gadafi a rebatizou de Praça Verde, mas recuperamos seu antigo nome, Praça dos Mártires”, disse à IPS a moradora de Trípoli Asma Mohammad. Como ela, milhares de pessoas se concentraram nesse local com a bandeira de três cores para comemorar um acontecimento político.

Há um século, os italianos executavam pessoas nessa mesma praça. Agora, um boneco de Gadafi está suspenso por um dos três grandes guindastes existentes no principal passeio de Trípoli.

“Este ano é o melhor Eid (Eid al-Fitr, ou banquete de caridade) da minha vida”, disse à IPS Faiz Bekhtari, também da capital. “Pela primeira vez vou comemorar em verdadeira liberdade”, afirmou este homem que perdeu o olho esquerdo na prisão. “Recolhia dinheiro para os combatentes das montanhas de Nafusa, reduto rebelde a 200 quilômetros de Trípoli, quando homens leais a Gadafi me prenderam em meu povoado, Geryan”, contou, acrescentando que está disposto a perdoar os que bateram em seu rosto. “Eid é uma época de reconciliação”, explicou.

Na entrada norte da Praça foram colocados símbolos do regime de Gadafi para as pessoas pisarem. Muitos tiram fotos fazendo o sinal da vitória sobre um tapete com o retrato do líder líbio e outras brincadeiras que até há pouco tempo só faziam em voz baixa. Não são ouvidos mais disparos na emblemática Praça. Homens com uniformes camuflados asseguram que não haja mais acidentes por “tiros amigos”. Um menino de 11 anos que estava em cima de um dos três guindastes abandonados em meio à Praça recebeu, em 29 de agosto, um tiro nas costas. Foi o primeiro acidente causado pelo entusiasmo dos rebeldes.

Combatentes de Misurata uniram-se às comemorações de Eid na Praça dos Mártires. São facilmente identificados porque quase nenhum usa colete à prova de balas. Chegaram em seus inconfundíveis veículos pretos contendo frases como “Misurata não será escravizada novamente”. Trata-se da terceira grande cidade da Líbia, que fica 200 quilômetros a leste de Trípoli. “Estamos esperando para ir a Sirte, cidade natal de Gadafi. Se não se renderem até amanhã, quando vence o prazo, daremos duro com eles como fizeram conosco”, disse Ahmed Sarbaan, de Misurata, mas nascido em Londres. A cidade ficou com a pior parte da guerra civil, sendo totalmente sitiada pelas forças de Gadafi.

A situação não é clara em Medina, a cidade velha de Trípoli, a cinco minutos de caminhada da Praça. Muitos dos residentes são estrangeiros. “Vê todos esses tipos fumando e tomando chá nessa cafeteria?”, perguntou Ramzan, diante de sua sapataria. “São todos egípcios. A maioria era de fiéis partidários de Gadafi até ontem. Ali não verá bandeira dos rebeldes”, acrescentou, parado diante de uma vitrine cheia de sapatos femininos. Não há muitos clientes. “Eid costuma ser uma boa época de vendas, mas não este ano. Muitos fugiram”, explicou Ramzan.

“Há cinco anos que trabalho na construção da Líbia”, contou o cidadão turco Eyub Tahan. “Gadafi fez coisas boas para seu país, mas penso que no final enlouqueceu. Não se pode disparar contra as pessoas apenas por reclamarem seus direitos, foi um grande erro”, acrescentou.

As comemorações do Eid levaram as pessoas a cantar, carregar bandeiras e até dançar em meio a um engarrafamento no centro de Trípoli. Os festejos incluíram a visita a Baba al-Aziziyah, o bombardeado complexo residencial onde Gadafi vivia. “Ainda creio que isto é um sonho. Não é que não podíamos entrar, não podíamos nem nos aproximar a vários quarteirões de distância”, disse Hatip. “Sempre disse que vivia em uma barraca de campanha, imagina só”, acrescentou uma mulher com raiva em uma sala perto de uma piscina coberta.

Milhares de pessoas visitaram o complexo residencial de Gadafi e o labirinto de túneis subterrâneos. Os pertences do outrora líder da revolução líbia são souvenir gratuito. Os oito quilômetros quadrados de terreno agora parecem uma feira. Um jovem se alegra por ter encontrado um postal enviado por Ayesha, filha de Gadafi, para sua tia. Outro homem se esforça para colocar no teto de seu automóvel uma porta de madeira.

“Três vizinhos meus foram assassinados há duas semanas. Três cidadãos do Chade foram detidos, mas o quarto, um líbio, continua livre. Todos o conhecemos no bairro”, disse Manad Zlitani, de 22 anos, do mesmo lugar de onde Gadafi pronunciava seus discursos. Envolverde/IPS