Para encerrar o ciclo de entrevistas sobre a crise econômica e financeira internacional realizado pelo Blog Além de Economia em conjunto com o site da revista CartaCapital, convidamos o Presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Marcio Pochmann.
Pochmann é economista e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na sua visão, após essa crise, a China sairá ainda mais fortalecida e, por isso, o Brasil deveria tomar medidas não somente reativas, mas também ativas para enfrentar a crise atual.
Além de Economia/CartaCapital: Recentemente o IPEA publicou uma pesquisa sobre a crise mundial e afirmou que a economia brasileira está melhor preparada para enfrentá-la do que em 2008. Por quê?
Marcio Pochmann: É bom salientar que estamos falando da mesma crise, que iniciou-se em 2008 e é associante, agora, em uma segunda onda em sua manifestação. Não se trata de uma crise diferente, embora em 2008 estivesse mais associada a uma natureza mais financeira. Agora estamos falando de uma crise de natureza fiscal, especialmente no centro do capitalismo mundial. É uma crise mais grave e ampla.
Quem teve a oportunidade de observar, por exemplo, o relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) verá que há uma situação lamentável de crise na saúde mundial, inclusive, há sinais de crise mundial educacional do ponto de vista de atrasos enormes. Nesse início do século XXI, temos sérios problemas ambientais, há também uma crise alimentar.
Enfim, essa crise se expressa de uma forma mais aguda nos países ricos, do ponto de vista fiscal nesse momento, mas tem uma amplitude que nos permite chamar a atenção pelo fato de que estamos vivendo uma crise na qual praticamente todos os países convivem com o regime de economia de mercado, com o capitalismo.
As crises anteriores, de maneira geral, tinham a sua dimensão mundial, mas a totalidade dos países não era capitalista como hoje. Nas crises do século XIX, de 1873 e 1896, por exemplo, tínhamos vários espaços do território mundial que não eram países, mas colônias. Na década de 30, uma parte do mundo era capitalista e convivíamos com países de economia planificada, como a ex-URSS. Agora temos uma dimensão global do ponto de vista do sistema e funcionamento do capitalismo.
O Brasil, de maneira geral, tem sabido aproveitar relativamente bem os momentos de crise. E a turbulência de 2008, no nosso modo de ver, foi um marco na condução da política macroeconômica no período recente. Com uma decisão inédita, olhando a trajetória das decisões macroeconômicas em períodos de crise, desde a antiga da dívida externa, em 1981, até dizia-se a época que quando os EUA tossiam, o Brasil contraía uma pneumonia, porque as medidas tomadas no Brasil, em geral, levavam ao aprofundamento da própria crise.
Desde 1981, quando havia uma crise internacional os governos brasileiros geralmente elevavam a taxa de juros, cortavam investimentos, reduziam gastos públicos, aumentavam impostos, mantinham o salário mínimo igual e não ampliavam os direitos sociais.
Em 2008, observamos uma reação no sentido inverso. Houve uma queda da taxa de juros, mesmo que tenha demorado, a elevação do salário-mínimo, a desoneração fiscal para determinados setores, ampliação dos gastos sociais e investimentos públicos. Isso fez com que o Brasil tivesse melhores condições de enfrentar a crise no ponto de vista da expansão do mercado interno.
No período atual, as ações já adotadas revelam a mesma preocupação. A presidenta Dilma Rousseff faz um movimento que antecipa o enfrentamento da crise, com a medida de reduzir a taxa de juros. Em 2008, levamos quatro meses para essa redução e os boletins do Banco Central, em plena crise, continuavam a afirmar que o Brasil estava vivendo uma expansão da atividade econômica, sendo verificado justamente o contrário. Agora não, já se antecipou e tomou decisões neste sentido.
A elevação do salário-mínimo para 619 reais em 2012, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional, vem a melhorar vários outros benefícios socais que estão atrelados ao salário-mínimo.
Ao meu modo de ver, o Brasil tentará enfrentar a crise reforçando ainda mais o seu mercado interno em um país de ordem continental, sem falar nos aspectos do ponto de vista fiscal, que nos coloca em uma situação relativamente confortável, sobretudo quando se compara aos países desenvolvidos, com uma dimensão da dívida líquida do setor público em torno de 40% do PIB, o saldo de reservas internacionais é muito superior ao que tinha em 2008.
AE/CC: Mas realmente estamos mais preparados? Quais outras medidas o governo brasileiro poderia tomar?
MP: Estamos mais preparados, mas é claro que seremos afetados, não há dúvida. Especialmente por ser uma crise de natureza mais fiscal, os países ricos tenderão a apostar mais no mercado externo que no interno, para uma possível recuperação. Com isso, entraremos em uma fase de aprofundamento da competição internacional, por isso, o Brasil tem que se antecipar e buscar a redução da taxa de juros e o reposicionamento da moeda e do câmbio para não ser tão afetado por uma concorrência desigual, por estar em uma posição inadequada de juros e câmbio.
Ao mesmo tempo, é um espaço de tomarmos medidas mais ativas e não apenas reativas, olhando, inclusive, a decisão de outros países, como a China, a Índia e a Noruega em 2008. O Brasil deveria utilizar melhor o seu fundo soberano, na hipótese, por exemplo, de adquirir empresas, comprar ações de empresas que se encontrem em patamares menores, subvalorizadas no mercado acionário, em função da própria crise. Comprar empresas é importante para fortalecer o setor produtivo nacional, reduzindo a dependência externa que o Brasil possui. Para se ter uma ideia, a China comprou empresas brasileiras em 2008.
Outra ação ativa, uma maior articulação, coordenação da política em defesa da produção e do nível de emprego no âmbito do continente sul-americano. Não tenho dúvida que a China vai sair mais forte da crise do que se encontra atualmente, para combater essa maior agressividade chinesa, o Brasil precisa se articular melhor do ponto de vista do Mercosul, para poder defender melhor o seu mercado interno em conjunto com países sul-americanos em defesa da produção e do emprego.
Por fim, a possibilidade que o Brasil tem de enfrentar a regressividade do sistema tributário é, nesse momento de dificuldade, ampliar a solidariedade do povo brasileiro com decisões que viessem a reduzir o peso de tributação sobre os mais pobres e aumentar a tributação progressivamente a renda dos segmentos que hoje pagam pouco ou quase nada em termo de tributação, a exemplo do que ocorreu na Inglaterra e, mais recentemente, a França que tomou medidas de tributação para os ricos.
AE/CC: Por que há uma regressividade tributária brasileira? É por que a maior parte da carga tributária brasileira é de impostos indiretos?
MP: Há um paradoxo no qual os que menos pagam impostos no País são os que mais reclamam. O Estado tem uma baixa capacidade de tributar os ricos e uma enorme eficiência em tributar os pobres. Além de ter uma quantidade enorme de impostos indiretos, os diretos são pouco progressivos. O ITR (Imposto Territorial Rural) praticamente não exerce sua função, nem de arrecadação e muito menos de correção das brutais iniquidades que existem na concentração fundiária no campo. O IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) de maneira geral, as favelas e casas de pessoas de menor renda, pagam, proporcionalmente, impostos maior do que as mansões. Podemos falar de outro aspecto estranho, que é o IPVA (Imposto sobre Veículos Automotores), quem têm automóveis, por exemplo, paga tributos. Já os proprietários de avião, helicópteros, lanchas, iates não pagam impostos. E mesmo o IR (Imposto de Renda), que poderia ser muito mais progressivo na medida em que a alíquota maior é 27%. Já tivemos, por exemplo, durante o regime militar alíquotas maiores que 27%, é estranho que o Brasil continue com uma alíquota tão baixa para rendas maiores.
Por fim, o próprio imposto sobre grandes fortunas, que não é implementado no Brasil e a renda imobiliária que cresce é praticamente não tributada. Há um espaço inegável para se fazer justiça tributária no Brasil, reduzir as desigualdades de renda e ao mesmo tempo, também, a tributação ser um instrumento de combate a própria pobreza. Se houver uma redução drástica sobre alimentos e serviços básicos certamente isso permitiria a população ter mais renda disponível, especialmente a mais pobre, e aliviar as condições de vida difíceis para a base da pirâmide social brasileira.
AE/CC: É possível pensar o desenvolvimento, no caso brasileiro, e até mesmo latino-americano sem o Estado?
MP: Evidentemente, não temos experiência histórica de desenvolvimento sem a presença do Estado. Estamos observando agora no aprofundamento da crise, que o Estado se torna ainda mais necessário, inclusive nos países desenvolvidos. Quem imaginaria até 2008, quando se consagrava a eficiência do setor privado e a incompetência do Estado, o Estado sempre visto como um problema? Alguém imaginaria que grandes empresas, como a General Motors (GM), pudessem ficar de joelhos demonstrando toda a sua ineficiência?
AE/CC: Mas, recentemente, alguns economistas ligados ao PSDB propuseram ampliação da privatização, inclusive da poupança dos trabalhadores como o FGTS (Fundo de Garantia de Tempo de Serviço)…
MP: Infelizmente estes senhores não aprenderam nada a respeito do que é o desenvolvimento. Alguém perguntou a eles a respeito de como é que se cava o povo? Com certeza, esses senhores não saberão responder. Povo, evidentemente para esses senhores é um detalhe a ser deixado em segundo plano. Esse debate muito ideologizado sem base histórica, que expressa eventualmente interesses econômicos dificilmente pode voltar a ganhar uma maior dimensão, justamente por ausência de base política. Esse projeto foi e vem sendo derrotado, especialmente no Brasil, nas últimas três eleições e ao mesmo tempo também em vários países latino-americanos. O Estado é um elemento essencial na própria dinâmica do desenvolvimento do sistema capitalista, como por exemplo, garantir a competição e possibilitar um horizonte a longo prazo em termos de orientação do próprio de desenvolvimento.
AE/CC: Podemos afirmar que nos últimos anos estamos vivendo, no Brasil, um ciclo de desenvolvimento econômico e social?
MP: Olhando as informações disponíveis, digo o seguinte: O Brasil, nas três últimas eleições, consagrou uma nova maioria política. Essa maioria está compromissada com o crescimento da economia, não aceita a recessão, não aceita voo de galinha. É diferente daquela composição, que conduziu os governos dos anos 80 e dos anos 90. Certamente, a iniciativa que o ex-presidente Lula tomou em 2008, a própria construção do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em 2006 e 2007, porque tinha uma maioria política que defendia isso. Então, as decisões tomadas pela presidenta Dilma e seu governo com a redução dos juros expressam uma maioria política, que não aceita a recessão. Essa, ao meu ver, irá sustentar um ciclo de expansão de possivelmente duas décadas> Logo, a questão que parece-me chave entender é: qual será a natureza dessa situação? Que ela vai ocorrer, sem dúvida. Agora, para onde vamos crescer? Essa mesma maioria política está dividida.
Há uma disputa de dois modelos. Primeiro; diz respeito ao Brasil da FAMA (fazenda, mineração e maquiladoras). Esse Brasil da FAMA vai crescer, mas evidentemente esse crescimento não sustenta empregos de qualidade, ou uma sociedade onde 80% das pessoas moram nas cidades. Porém, esse Brasil da FAMA ganha dimensão a medida que tem o câmbio valorizado, a medida que tem uma taxa de juros muito alta. Ganha expressão em parte nas medidas que estão sendo tomadas e conduzidas pelo próprio governo. Mas nós temos de outro lado uma disputa, o Brasil do VACO (Valor agregado e conhecimento). temos que dar conta de produzir produtos primários, mas o importante é agregar valor as cadeias produtivas. Agregação de valor pressupõe conhecimento, pesquisa, inovação tecnológica, formação de quadros, ampliação do ensino s uperior etc. Tem toda uma agenda por aí.
Quando a gente olha para políticas como o Brasil Sem Miséria e o Brasil Maior, por exemplo, a despeito das críticas que podemos fazer, essas duas políticas orientam o Brasil do VACO e não da FAMA. Há uma maioria política comprometida com o crescimento que vai ocorrer, mas como será esse crescimento? Vai depender do resultado dessa disputa que está em jogo no Brasil.
AE/CC: O IPEA realizará, na última semana de novembro de 2011, a 2ª. Conferência do Desenvolvimento (CODE) qual é a perspectiva desse evento?
MP: A 2ª Conferência resulta em primeiro lugar do sucesso que foi a primeira, mais de 8.500 participantes diversos, refletindo a heterogeneidade do Brasil. Estudantes, donas de casa, trabalhadores, empresários, militares, especialistas, ministros, juízes, enfim, a sociedade representada discutindo o desenvolvimento. Entendemos que o desenvolvimento é um tema tão importante que não pode ser tratado apenas por especialistas, políticos e o governo, mas tem que envolver a sociedade.
Essa é uma experiência muito recente que estamos tendo de construir o desenvolvimento pela via democrática. Isso pressupõe participação, uma gestão e uma organização pública dos diferentes conhecimentos e saberes sobre o próprio desenvolvimento.
Esse evento, que tivemos a oportunidade de realizar no ano passado, foi muito exitoso. Combinou mais de 500 mesas de debates sobre os diferentes temas, desde a discussão sobre o submarino nuclear brasileiro até o debate sobre o futuro da cultura regional, passando pela sustentabilidade ambiental e a questão da tributação brasileira. Isso é uma tentativa de recuperar a perspectiva totalizante do desenvolvimento, transitando das especialidades para uma visão mais global.
Um segundo aspecto é que esta 2ª. Conferência vem acompanhada de conferências estaduais, feitas também com o objetivo de levar o tema do desenvolvimento à perspectiva local e regional. Isso ocorre porque infelizmente somos um País com uma trajetória histórica de longas desigualdades nas regiões e estamos vivendo comum dinamismo diferenciado nas regiões. Então, pensar em longo prazo pressupõe conhecer melhor a realidade regional e local. Neste sentido, nesta conferência vamos fazer um esforço muito grande para reunir a trajetória, o debate sobre as políticas que temos hoje no Brasil, o que queremos ser nos próximos anos e como faremos para chegar lá.
* Paulo Daniel é economista, mestre em economia política pela PUC-SP, professor de economia e editor do Blog Além de economia.
** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.