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Comoção na França por ataque à revista Charlie Hebdo

Desenho pela paz. Crédito: Plantu
Desenho pela paz. Crédito: Plantu

 

Paris, França, 9/1/2015 – “São covardes que reagiram à sátira empunhando seus Kalashnikovs”. Assim o renomado caricaturista francês Plantu qualificou os assassinatos de dez empregados da revista satírica Charlie Hebdo e dois policiais nesta capital, no dia 7.

Um dos jornalistas assassinados, o chargista Bernard Verlhac, conhecido como Tignous, era membro da organização Desenhos pela Paz, a organização que Plantu fundou com o ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, em 2006, devido aos protestos desatados pelas polêmicas caricaturas do profeta Maomé publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten.

Fontes policiais e testemunhas disseram que dois homens armados e encapuzados entraram nos escritórios da revista e abriram fogo, no final da manhã do dia 7. Mataram 12 pessoas e deixaram 11 feridas, algumas gravemente, antes de fugirem em um automóvel conduzido por um terceiro envolvido.

A polícia identificou os três principais suspeitos do massacre. Hamyd Mourad, de 18 anos, se entregou às autoridades, enquanto os irmãos Said e Chérif Kouachi, de 34 e 32 anos, permanecem foragidos. As imagens de vídeo dos acontecimentos, tomadas de prédios vizinhos, mostram os atacantes matando um policial ferido no chão. Na noite do dia 7, havia uma forte presença policial na capital francesa em busca dos suspeitos.

Em um discurso, o presidente francês, François Hollande, afirmou que os assassinos seriam levados à justiça e “severamente punidos” por suas ações. Apelando para a unidade, disse que o ataque foi uma agressão contra os ideais e as liberdades nacionais, incluída a liberdade de expressão.

Os franceses recorreram às redes sociais para expressar sua solidariedade com o pessoal da revista divulgando imagens com as palavras “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). Milhares de pessoas se reuniram na histórica praça da República em Paris e também em várias outras cidades francesas.

O semanário era alvo de ataques há anos, desde que publicou caricaturas do profeta Maomé. Em 2010, atacantes jogaram bombas incendiárias em seus escritórios no distrito 11 de Paris, e seus quadrinhos foram considerados ofensivos por diversos grupos nos últimos dois anos.

A primeira página da Charlie Hebdo desta semana mostrava o controvertido escritor Michel Houellebecq, cujo romance mais recente, Submissão, retrata uma França do futuro próximo governada por um regime islâmico.

Todo o espectro político e religioso condenou os assassinatos. O Conselho Francês do Culto Muçulmano declarou que “a bárbara ação” também foi um atraque “contra a democracia e a liberdade de imprensa”, enquanto a Federação Protestante da França expressou sua “repulsa” e afirmou que os atos “odiosos” não poderiam ter justificativa em nenhuma religião.

Irina Bokova, diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com sede em Paris, disse estar “horrorizada” pelo ataque. “Isto é mais do que uma tragédia pessoal. É um ataque aos meios de comunicação e à liberdade de expressão. A comunidade mundial não pode permitir que os extremistas silenciem a livre circulação de opiniões e ideias. Devemos trabalhar juntos para levar os responsáveis perante a justiça e nos manter unidos por uma imprensa livre e independente”, enfatizou.

A Anistia Internacional disse que o ataque foi um “dia negro” para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, enquanto a Federação Europeia de Jornalistas (EFJ) o qualificou de “ato de violência bárbara contra os jornalistas e a liberdade de imprensa”. O presidente da EFJ, Mogens Blicher Bjerregaard, destacou que os jornalistas hoje em dia enfrentam mais perigos e ameaças do que antes.

No ano passado, 118 jornalistas e trabalhadores de meios de comunicação morreram por fazerem seu trabalho, segundo a EFJ e outras organizações. Na última década, houve mais de 700 mortes por este motivo. Em 2 de novembro, a ONU celebrou o primeiro Dia Mundial Contra a Impunidade dos Crimes Contra Jornalistas. A maioria dessas mortes foi de “assassinatos deliberados cometidos por causa da denúncia jornalística do crime e da corrupção”, segundo a EFJ.

As caricaturas recentes da Charlie Hebdo se referiam ao líder do grupo extremista Estado Islâmico e inclusive pareciam prever um ataque, ao anunciarem aos radicais que tinham até o final de janeiro para “apresentarem seus desejos”, em uma referência à tradição francesa dos ministros do governo que apresentam seus “desejos” à imprensa a cada início de ano.

Mandatários e chanceleres de todo o mundo transmitiram à França sua condenação pelos atos de violência e suas condolências às famílias das vítimas. Mas talvez as mensagens mais profundas tenham partido dos colegas dos mortos no mundo da imprensa, os chargistas.

Plantu, pseudônimo de Jean Plantureux, contou que a Desenhos pela Paz, onde os empregados trabalharam até altas horas da noite do dia 7, havia recebido milhares de mensagens e desenhos. “Estamos com raiva. Os desenhistas, cristãos, muçulmanos, judeus, estão escandalizados e com raiva. E para nos expressar, pegamos um lápis e desenhamos”, disse na televisão francesa.

A Desenhos pela Paz foi criada com o único propósito de estender pontes entre pessoas, religiões e regiões, afirmou Plantu. O trabalho dos caricaturistas é “mais forte do que os atos de barbárie” cometidos pelos “covardes” no dia 7, acrescentou.

Em uma entrevista de 2014, na cidade francesa de Montpellier, Plantu afirmou à IPS que o trabalho da organização sem fins lucrativos foi importante na promoção do diálogo, da compreensão e do respeito mútuo mediante o uso do desenho como uma linguagem universal.

Nessa conferência, um dos participantes de destaque foi Tignous, que demonstrou ser divertido tanto ao falar quanto ao desenhar. Ele e outro jornalista se perderam tentando chegar ao centro de conferências, e ele brincou dizendo que tinha pernas muito curtas para saltar barreiras, mas, ao final, foi quem encontrou o caminho certo. Mais tarde, nessa conferência, suas caricaturas provocaram risos do público. Para ele e outros desenhistas, o trabalho tinha a ver com a liberdade para brincar com os extremistas e a hipocrisia dos políticos.

Os fundadores da Desenhos pela Paz disseram que a organização pretende ressaltar a ideia de que os caricaturistas têm a “responsabilidade de fomentar o debate em lugar de acender paixões, de educar em lugar de dividir”.

Segundo vários comentaristas, é possível que a Charlie Hebdo tenha acendido as paixões com sua sátira, mas os assassinatos pareceram uma tentativa de acabar com todo debate e fomentar a divisão na França, onde cresce a popularidade do partido ultradireitista Frente Nacional.

Os assassinatos tiveram a finalidade de “estabelecer o terror e amordaçar os jornalistas, os caricaturistas, mas também todos os cidadãos”, afirmou a Desenhos pela Paz em um comunicado, destacando que os atacantes não têm a última palavra, porque “a arte e a liberdade serão mais fortes do que toda intolerância”. Envolverde/IPS