Vitória-régia (Victoria amazonica) na planície de Moxos, Bolívia. Crédito: Photostock

As selvas do Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure estão prestes a serem atravessadas por uma estrada.

La Paz, Bolívia, 5 de setembro de 2011 (Terramérica).- Uma floresta de enorme riqueza natural com superfície igual a de três mil campos de futebol no centro da Bolívia será a primeira vítima da estrada projetada pelo governo, que passará pelo Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis). É o que afirmam defensores do meio ambiente, que também temem a expansão de cultivos de coca nessa selva virgem fechada entre os rios Isiboro e Sécure.

Suas florestas e savanas se estendem desde a planície de Moxos, no departamento de Beni, até as serras subandinas de Cochabamba, com diferentes pisos ecológicos, que vão de planícies a áreas a 2.700 metros de altitude. A estatal Administradora Boliviana de Estradas (ABC) estimou, em setembro de 2008, um orçamento de US$ 3,8 milhões para desmonte, limpeza de açudes e de terra em uma extensão de 1.530 hectares da floresta.

A estrada terá 306 quilômetros entre Villa Tunari, no central departamento de Cochabamba, e San Ignacio de Moxos, em Beni, com largura de 7,30 metros, acostamento de dois metros em cada lado e um tipo de asfalto de tratamento superficial duplo. O trecho através do Tipnis, de 177 quilômetros, exige uma licença ambiental que ainda não foi expedida. Com custo de US$ 415 milhões, 80% financiados pelo Brasil, o principal argumento do governo é integrar 1,7 milhões de habitantes de Cochabamba e Beni e concretizar um corredor internacional para o tráfego de mercadorias do Brasil para o Oceano Pacífico.

Para a analista ambiental Teresa Flores, esse elevado custo anuncia o “uso de grandes insumos como concreto, ferro e a operação de máquinas pesadas para desmatar, com altos impactos”, disse ao Terramérica. Os riscos para a região, com 714 espécies de fauna e 3.400 de flora, são enormes, disse ao Terramérica o ex-senador pelo governante Movimento ao Socialismo, Gastón Cornejo. Pela estrada ingressarão projetos para desenvolver biocombustíveis e transgênicos, herbicidas e componentes químicos para processar a maconha e a cocaína, o que também fará aumentar a criminalidade e a insegurança, acrescentou.

Uma análise do Fórum Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ao qual o Terramérica teve acesso, compara o efeito da estrada com o da “passagem de um tornado destruindo tudo que estivesse em seu caminho, com o antecipado desaparecimento das 64 comunidades que habitam o Tipnis”, compostas por cerca de 15 mil pessoas das etnias moxeña, yuracaré e chimán.

A Bolívia é um dos países que mais desmatam no mundo, à razão de 320 metros quadrados anuais por pessoa, cerca de 20 vezes mais do que a média mundial estimada em 16 metros quadrados por pessoa ao ano, segundo a coordenadora de Biocomércio Sustentável da Fundação Amigos da Natureza, Andrea Urioste. A cada ano, perde-se aproximadamente 130 mil quilômetros quadrados de florestas tropicais no mundo, uma área semelhante à da Nicarágua, recordou Andrea.

A Bolívia “não reconhece a posição que ocupa como um dos países com as maiores taxas de desmatamento per capita do mundo” e carece de “uma proposta real” para “avançar em um verdadeiro plano de desenvolvimento sustentável”, afirma a coordenadora da Fundação no texto “Desmatamento na Bolívia: Uma Ameaça Maior à Mudança Climática”, publicado em setembro de 2010. Em maio, a representante das Nações Unidas na Bolívia, Yoriko Yasukawa, afirmou que, “embora a Bolívia não seja um dos grandes culpados pelo aquecimento global, tampouco cremos que apoia suficientemente a redução de emissões, se pensarmos que todos os anos são destruídos no país 300 mil hectares de floresta”.

Para Teresa Flores, a estrada representa “uma abertura para a colonização e o plantio de coca”. O governo concedeu terras aos cultivadores do vegetal no departamento de Pando (norte), mas, segundo a analista, a concentração de alcaloide nas plantas dessa área é menor e por isso os produtores têm os olhos voltados para o Tipnis. Cultivo de coca para usos cerimoniais e alimentares é legal na Bolívia, mas há extensas áreas plantadas com fins ilegais.

No dia 28 de setembro de 2009, funcionários do Serviço Nacional de Áreas Protegidas e dirigentes indígenas denunciaram a presença no Tipnis de pessoas com armas de fogo, presumivelmente vinculadas ao narcotráfico, às quais foram atribuídas ações violentas que terminaram com um morto e dois feridos. Um dia depois, o então vice-ministro de Terras, Alejandro Almaraz, disse suspeitar que os assentamentos de colonos e as plantações de coca se relacionavam com o narcotráfico e que havia entre quatro mil e cinco mil hectares plantados com coca ilegais na reserva. Em 2 de fevereiro de 2010, Almaraz renunciou ao cargo e hoje é um dos ativistas contra a estrada.

Os produtores de coca consideram “legítimo” despojar os indígenas de suas terras baixas porque os veem como “selvagens” e, portanto, sem capacidade para produzir alimentos, disse Teresa Flores. De fato, o avanço da produção de coca na zona tropical de Cochabamba, especialmente no Chapare, obrigou o povo yuracaré a deixar terras agora cobertas de coca e se refugiarem no Tipnis, recordou a analista ambiental. “O impacto não é apenas ambiental, é cultural”, acrescentou.

O governo acredita que a estrada permitirá combater as irregularidades e acertar entre todas as partes a preservação do território, disse ao Terramérica o secretário-geral da ABC, Antonio Mullisaca. Contudo, ainda não houve uma consulta prévia sobre o projeto com as comunidades indígenas, prevista na Constituição e em várias leis, e esse mecanismo não está regulamentado.

Na opinião do ex-ministro da Presidência e diretor da estatal Agência para o Desenvolvimento de Macrorregiões e Zonas Fronteiriças, Juan Ramón Quintana, a marcha contra a estrada, que cerca de mil indígenas amazônicos realizam com destino a La Paz, é incitada por organizações não governamentais que defendem uma política ambiental do mundo desenvolvido. Quintana, major da reserva e homem de confiança do presidente Evo Morales, acusou inclusive a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) de promover a caminhada, de 600 quilômetros, para criar um ambiente de desestabilização, e propôs expulsá-la do país, mas o governo não aderiu a essa sugestão.

* O autor é correspondente da IPS.

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Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Sécure, em espanhol

Administradora Boliviana de Estradas, em espanhol

Custos sociais e ambientais da estrada Villa Tunari – San Ignacio de Moxos, em espanhol

Fundação Amigos da Natureza, em espanhol

Desmatamento na Bolívia: Uma ameaça maior à Mudança Climática, pdf em espanhol

Serviço Nacional de Áreas Protegidas, em espanhol

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.