Protagonistas do ciclo de recolhimento e novo manufaturamento precisam ser melhor remunerados.
A implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos é um importante ponto de transição para a sociedade brasileira. Governos, empresas e consumidores têm desafios próprios para transformar resíduos em matérias-primas de novas cadeias de valor, reduzir descartes e construir valor para os resíduos. O tema mobilizou as atenções no final da terça-feira (03) na Conferência Ethos. A mesa de discussões foi formada por Camila Valverde, diretora de sustentabilidade do Walmart Brasil; Ricardo Abramovay, professor da Faculdade de Economia da USP; Roberto Laureano da Rocha, coordenador da Secretaria Nacional do Movimento dos Catadores; Silvano Silvério, presidente da autoridade municipal de Limpeza Urbana de São Paulo; Ismael Gilio, especialista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e a mediadora Daniela Damiati Fereira, coordenadora de Políticas Públicas do Ethos.
Logo de início, o jornalista Matthew Shirts apesentou a publicação “Lixo Zero: Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera”, editada pelo projeto Planeta Sustentável da Editora Abril e coordenada por Ricardo Abramovay, que apresenta uma avaliação do que está sendo feito e enfatizando como a gestão de resíduos pode romper o modelo convencional de descarte sem compromisso por parte da sociedade. A publicação traz um roteiro para a transformação, que prevê a criação de valor através do estabelecimento de princípios, objetivos, estratégia e métrica na gestão dos resíduos. A publicação está disponível no site do Instituto Ethos.
Para Ricardo Abramovay, é preciso mudar de um modelo econômico linear, onde se extrai a matéria-prima, industrializa-se, vendem-se os produtos e descarta-se os resíduos, para uma economia circular, onde os resíduos orgânicos retornam de maneira ordenada para a biosfera e os resíduos industrializados retornam à tecnosfera. Ele pensa que a gestão deve prever o pagamento pelo princípio do poluidor-pagador, onde a iniciativa privada deve arcar com os custos através de uma agência que organiza a participação das empresas. No Brasil, cita como exemplo as empresas de pneus, que instituíram uma organização para a gestão de seus resíduos para cumprirem a legislação específica. “Outro ponto é a taxa para a gestão de resíduos a ser paga pelos consumidores”, pontua Abramovay. Para o professor, não tem sentido as prefeituras arcarem com esses custos cada vez mais altos, o que retira a capacidade de investimento em outras áreas. “O papel do Estado é decisivo para fixar metas ambiciosas e fiscalizar o cumprimento”, explica.
Um dos elos importantes nessa cadeia de resíduos é o varejo, que lida com as duas pontas principais: os fabricantes de produtos e os consumidores que precisam descartar embalagens e produtos após sua utilização. Para Camila Valverde, do Walmart, uma das principais políticas adotadas por sua organização é a mobilização pela ecoeficiência e melhoria nas cadeias de suprimentos. “No Walmart assumimos o compromisso de enviar zero resídios para aterros sanitários até 2025”, explica. Uma meta que está sendo perseguida com afinco em todas as unidades e que procura envolver os milhares de clientes que as unidades recebem diariamente. “Procuramos divulgar ações de engajamento, educar e oferecer postos de coleta de resíduos recicláveis, além de realizar cursos online em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV)”, conta a executiva.
Uma das questões mais instigantes da PNRS é o apoio que deve ser dado aos catadores de resíduos, que, segundo Roberto Laureano, prestam um serviço público sem serem remunerados por isso. “A conta não fecha, não dá para financiar esse serviço apenas com o preço de venda dos resíduos coletados”, explica. Laureano acredita que é preciso uma mobilização de empresas e governos para gerar um modelo de financiamento que permita melhorar os sistemas de coleta e pagar os catadores de forma digna. Na sua opinião, as prefeituras devem organizar esse pacto e pagar pelos serviços, mas há muita oposição de gestores que não querem trabalhar com cooperativas de catadores e de empresas que querem utilizar os resíduos em um processo chamado “queima energética”. “É preciso ter um plano de gestão integrado e, também, a criação de uma efetiva Bolsa de Resíduos, que vai estabelecer um preço de negociação”, explica.
Para Silvano Silvério, que atualmente está na direção da Autoridade Municipal de Limpeza, mas que foi um dos principais articuladores no governo federal para a implantação da PNRS, os municípios brasileiros deveriam ver a realização de seus planos de gestão como oportunidades para a definição de suas prioridades na área. “Os benefícios da gestão de resíduos são claros, e em muitos casos essa gestão pode ser superavitária para a cidade, além de gerar emprego e renda”, explica. Os números apresentados por Silvério, no entanto, não são animadores. “Apenas 12% dos produtos pós-consumo são efetivamente reciclados e somente 1% dos resíduos coletados são efetivamente reciclados”, conta. Para ele, o setor privado também tem de se envolver e pagar pela destinação correta de seus resíduos, principalmente os descartes pós-consumo.
Uma das falas mais técnicas do debate foi feita por Ismael Gilio, que realizou um estudo sobre a PNRS e a publicação “Lixo Zero”, e apontou que anda há muitas ambiguidades na lei que precisam ser esclarecidos. “Temos de resolver isso antes, porque senão ficamos todo o tempo discutindo e quem paga a conta no final são os catadores, que não têm como repassar seus custos”. Ele crê que a reciclagem deve ser tratada como um negócio e a cooperativa deve ter retorno de seus investimentos, que hoje incluem caminhões, áreas extensas para manejo de resíduos, máquinas e equipamentos de segurança. Gilio reforça a tese de que, da forma como está, “a conta não fecha”. “Estamos sendo irresponsáveis em transferir o peso da responsabilidade do sucesso da PNRS para as cooperativas de catadores”, alertou.
A implantação da PNRS é um dos mais importantes desafios práticos atuais para a construção de um modelo de economia mais sustentável, mas precisa de mais ação por parte dos atores envolvidos, ou seja, estabelecer de fato o que significa “responsabilidade compartilhada” e definir objetivamente “quem paga a conta”.
* Publicado originalmente no site Conferência Ethos 2013.