Rio de Janeiro, Brasil, 16/8/2012 – Está para entrar em vigor uma lei que reserva metade das vagas nas universidades brasileiras para estudantes que cursaram primário e secundário em escolas estatais, em uma tentativa de democratizar o ensino, que exigirá reformas estruturais. Pablo Gentili, diretor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil, está convencido de que a lei é “um avanço na democratização da educação e, em um sentido mais amplo, da sociedade brasileira em seu conjunto”.
A lei de cotas sociais e raciais foi aprovada no dia 6 pelo Senado, após 13 anos de discussão legislativa, com apenas um voto contra, e agora espera a promulgação pela presidente Dilma Rousseff. “As cotas permitirão abrir a oportunidade de acesso ao ensino superior público, à educação de melhor qualidade, para aqueles setores da sociedade historicamente excluídos dela”, disse à IPS Gentili, autor do ensaio Pedagogia da Igualdade, editado em 2011 pela Século XXI, em Buenos Aires.
O especialista se baseia em estatísticas que mostram o desigual acesso dos setores mais pobres às universidades públicas federais, cobiçadas, ironicamente, por sua qualidade, pelos que tiveram melhores oportunidades de estudo nos níveis básico e intermediário. No Brasil metade da população se declara negra ou mestiça, mas apenas 10% deste grupo chega à universidade. Trata-se do setor com mais pobres.
“As oportunidades educacionais se distribuem de forma desigual porque as oportunidades sociais, as condições de vida e os direitos também são desigualmente apropriados e aproveitados em uma das sociedades mais injustas do planeta”, apontou Gentili. “Por trás de um ‘mito meritocrático’ se esconde a realidade de um país onde os mais pobres veem cotidianamente frustradas suas expectativas e demandas de mobilidade e progresso social. Os pobres nunca chegam aos espaços que desejam, que acabam monopolizados pelos setores mais ricos e privilegiados”, acrescentou o especialista.
Este processo de elitização da universidade pública também é percebido por Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especializado em desigualdades raciais na educação, declarou à IPS que “nunca poderia ser contra” o conteúdo da nova lei. Contudo, não ignora que representará “um desafio” que obriga as universidades públicas a se preparar. A lei estabelece prazo de quatro anos para que as 59 universidades federais se adequem às novas regras. Mas, em apenas um ano deverão garantir pelo menos 25% das vagas para os alunos procedentes de escolas públicas.
“A universidade brasileira, principalmente a pública, não está preparada para receber esses alunos com maior diversificação socioeconômica e racial”, afirmou Paixão. “Uma coisa é dar aula para filhos da elite que têm maior facilidade para abordar temas que exigem acima de tudo um capital familiar e cultural. Outra coisa é receber estudantes com baixo capital cultural e familiar e precisar investir neles para que alcancem o mesmo rendimento dos demais”, observou.
A lei estabelece que metade das vagas reservadas para estudantes do sistema público sejam para os que têm renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo. Também determina que entre essas vagas sejam priorizados os alunos que se autodeclaram negros, mulatos ou indígenas, segundo a proporção populacional em cada um dos 26 Estados do país. O sistema de cotas raciais existe no Brasil há dez anos, quando foi sancionada a primeira legislação desse tipo no Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, mais de 80 universidades têm alguma medida de ação afirmativa e, em particular, mais da metade dos centros superiores federais já contam com algum sistema de promoção social ou racial em seus processos de acesso, resumiu Gentili.
“As cotas raciais e sociais são simplesmente uma medida de emergência que procura corrigir uma injustiça”, destacou o diretor da Flacso no Brasil. Após uma década em vigor, a lei estabelece sua própria revisão. A Federação Nacional de Escolas Particulares anunciou que questionará a lei na justiça porque considera discriminatória, com o argumento de que estabelece oportunidades diferentes de acesso à universidade. “Hoje a escola privada atende os níveis socioeconômicos A, B, C e D, inclusive em comunidades de baixa renda”, disse à IPS sua presidente Amábile Pacios. “Uma criança não pode ser penalizada por isso”, lamentou.
Pacios recordou a dificuldade dos empregadores brasileiros para contratar candidatos “que apenas mal dominam as quatro operações básicas ou não conseguem um desempenho satisfatório em um ditado de dez palavras”, e acrescentou que “um país que precisa de um sistema de cotas assume que a escola pública é de má qualidade”, e prevê que, ao contrário do esperado, a nova lei “fortalecerá a universidade privada porque começará a receber os melhores alunos”, excluídos pelas cotas sociais das estatais.
Gentili rechaça esse argumento e outros “preconceitos antidemocráticos”, como afirmar que os pobres deterioram a qualidade da universidade quando entram nela. “Os pobres sabem que a universidade é um bem valioso. Justamente por este motivo, quando chegam a ela se esforçam enormemente, fazendo com que anos de um fraco ensino secundário limitem seus efeitos de exclusão”, enfatizou. Segundo este especialista, após uma década de políticas afirmativas, nenhuma das universidades que as incorporaram sofreu baixa em seus indicadores de qualidade de ensino. Pelo contrário, destacou, “melhoraram quase todos seus indicadores de qualidade”.
Gentili não acredita que seja preciso esperar “a escola básica melhorar para que a universidade pública seja mais democrática”. A seu ver, é preciso “assumir os dois desafios de forma simultânea e articulada”. É isso também o que espera Paixão, que a nova lei contribua para um “projeto de democracia, distribuição de renda e ampliação das oportunidades de mobilidade social”. E ponderou: “agora que a universidade pública terá que receber alunos da escola pública, quem sabe o Brasil muda sua histórica postura de tratá-la com negligência”. Envolverde/IPS