Anteprojeto de lei quer criminalizar o bullying. Para especialistas, educação e prevenção ainda são as melhores soluções para amenizar o problema.
Assediado pelos colegas de escola desde a segunda série, o australiano Casey Heynes tornou-se um símbolo do bullying depois que um vídeo seu espalhou-se pela internet. Captado por celular, o vídeo mostra o gordinho de 15 anos sendo provocado por um valentão. Tudo muda quando, depois de levar um soco, Casey revida, levantando o agressor no ar e jogando-o no chão, em um golpe parecido com o do personagem de videogame Zangief. Apelidado de Garoto Zangief, Casey declarou à televisão australiana que chegou a pensar em suicídio.
O bullying, definido como violência física ou psicológica gratuita realizada dentro de uma situação de desequilíbrio de forças, pode ganhar no Brasil uma nova dimensão: a de crime. A Promotoria da Infância e da Juventude de São Paulo apresentou um anteprojeto que o criminaliza, com pena de até três anos de reclusão para menores de 18 anos.
Um dos redatores do texto-base, o promotor Mario Augusto Bruno Neto, explica que um aumento gradativo no número de bullying relatados à Promotoria da Infância e da Juventude de São Paulo, nos últimos cinco anos, trouxe o assunto à tona. “Ano passado, tivemos casos graves em escolas de São Paulo e reparamos que estávamos desaparelhados para lidar com o problema”, explica.
O texto do anteprojeto prevê pena mínima de um ano e máxima de 30 anos (em caso de morte) para maiores de 18 anos. Menores de idade que cometerem bullying receberão, de acordo com a gravidade, uma das seis medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que vão desde uma advertência e prestação de serviços até internação na Fundação Casa, a nova Febem. A internação poderá ser aplicada em casos violentos, com grave ameaça ou reincidente. “Vamos imaginar que o menino venha a ser processado pela prática desse tipo penal. Da primeira vez, não ocorrendo violência ou grave ameaça ou morte, ele recebe, por exemplo, uma medida de prestação de serviços à comunidade. Se ele persistir, teoricamente, é possível a internação”, exemplifica Bruno Neto. A internação, pelo ECA, é limitada a um prazo máximo de três anos.
É ou não crime?
Precursora das pesquisas sobre o tema no Brasil, a consultora educacional Cléo Fante discorda do tratamento criminal. “Antes de punir, o ideal seria prevenir. Seria muito importante que as instituições encontrassem alternativas para o enfrentamento do bullying. A punição deveria ser a última instância”, defende. O psicólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Renato Alves, também é contra a criminalização. “Só vai remediar o mal já feito. A única coisa que tem o poder de prevenir são ações educativas.”
O objetivo maior de se criar uma legislação específica para o bullying, de acordo com o promotor, é criar consciência. “Eu vou diminuir os casos na medida em que a escola se aparelhar melhor.” Para Bruno Neto, a ideia é atuar em parceria com a escola. “Se a escola falhar, ela sabe que terá a retaguarda da lei.” Criminalmente, nem os pais nem a escola podem responder pelo bullying praticado por um aluno, ainda que menor de idade.
O problema começou a ser estudado a partir da década de 1970, na Escandinávia. No Brasil, os primeiros estudos datam dos anos 2000. O fato é que as causas e consequências da prática passaram a ter mais repercussão a partir de casos específicos e extremos. A mídia faz uma cobertura constante, com picos de atenção, desde o incidente de Columbine, em 1999, quando uma dupla de adolescentes feriu 21, matou 12 e cometeu suicídio em uma escola de ensino médio norte-americana.
No Brasil, o primeiro caso expressivo aconteceu em Taiúva (SP), quando um rapaz de 18 anos voltou à escola onde estudava portando uma arma – feriu oito pessoas e cometeu suicídio, em 2003. A cobertura do massacre de Realengo, no Rio de Janeiro – em que um ex-aluno, Wellington Menezes, invadiu uma escola e assassinou 12 crianças no dia 8 de abril deste ano –, também levantou o tema.
A mais abrangente pesquisa já publicada sobre o tema no Brasil (Bullying no Ambiente Escolar, de 2009) constatou que um em cada dez estudantes brasileiros já praticou ou sofreu bullying na escola. A escalada de uma cultura altamente competitiva na sociedade brasileira pode explicar, em parte, a sensação de agravamento do fenômeno. “Muitas vezes, denegrir, minimizar e abalar moralmente o outro faz parte do jogo de competição”, explica Renato Alves.
Mesmo que vingue, o anteprojeto precisa percorrer um longo caminho antes de se tornar lei. Em maio, Bruno Neto fez uma primeira redação do anteprojeto, depois entregue para outros 12 promotores, que estudaram e sugeriram alterações no texto. Se tudo correr como esperado, o promotor vai pedir o apoio do procurador-geral do Ministério Público, Fernando Grella Vieira, a fim de levar o projeto até um deputado federal. Só então o anteprojeto deverá ser apresentado e votado no Congresso.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.